Chovia torrencialmente e a água rebocava os grãos de areia estendidos pelo chão, a chuva berrava efusivamente nas cabeças nuas que sofriam o efeito das pernas. Quanto mais caía, mais proibia a acção dos passos, a trovoada rachava os peitos semi-nus e bem suados, relampejava e o dia ficava mais claro e abrilhantado, tornando-se numa claridade medonha.
Chiwiza ficou mudo e quase ensurdecido pela fúria da natureza, a sua enxada no ombro esquerdo recebia mais um banho que lhe esperava há séculos, os seus farrapos alimentavam a sua cede afavelmente alagados, os pés vestidos de calos e a mão direita segurando fortemente um molho de lenha para fazer a refeição. O velhote convencido, rendeu-se e parou um instante até que a chuva, os berros e os seus acompanhantes atenuassem as suas fúrias.
Meteu-se por debaixo de uma árvore para aproveitar-se dos ramos de malha que a cobriam. Os raios do relâmpago penetravam assustadores, o silêncio da trovoada tornava-se mais barulhento aos ouvidos surdos e atentos do rapaz das oitenta primaveras e a água deslizando invadia-lhe o esconderijo. Parado, olhava fixamente nos milhares de pingos em paralelo, seu olhar consumia a luz e se sentia nas trevas da tarde.
Nunca antes imaginou que um dia passaria a tarde naquela pobre mata. Já na velhice, pela primeira vez faria a sua ceia com bichos e insectos. Era uma tarde que atormentava até aos pássaros, a claridade também desamparava o velhote e rendia-se à escuridão da noite que se avizinhava.
Receando passar a noite naquele inferno, naquelas condições, sozinho sem ninguém da sua espécie, resolveu abandonar os seus amigos de ocasião: as borboletas, cobras, lagartos, etc., envolveu os pés no caminho coberto de água, cansado, o velhote arrastava os pés desesperado, a lenha e o velho cabo da enxada saciados de água parecia que lhe falavam e exprimiam um sentimento mútuo, os fiés farrapos que nunca tiveram um único descanso lhe confidenciavam a sua fartura.
Chiwiza já sufocado de tanto sofrimento, tanto andar, eterna falta de apetite de um dia, só tinha no olho a sua velha baiuca. O que ele queria era mas é descansar um milénio na noite tardia. Depois de tanto caminhar no escuro pálido da tarde cumprimentando-se com os grilos, começou a ver despontar o terraço de algumas casas da aldeia, aliviado o velhote se aproximava do seu verde campo.
Entrou pelas entranhas do capim do seu vasto quintal, cansado do cansaço, a carapinha inundada gotejava pelas dunas enrugadas da face, as gotas penetravam-lhe pelas concavidades das narinas, espreguiçavam-se nas orelhas, beijavam os seus lábios enviuvados há tempos, escondiam-se na barba branca, acariciavam o peito cheio de barbaridades, descendo até aos calos dos pés.
A chuva caía já em chuviscos acarinhadores depois de toda tarde atormentando almas, a trovoada e o relâmpago se despediam da sua missão brusca, iluminando o caminho em segredo, pausadamente como um instantâneo que vai para sempre, a trovoada ia desejando boa noite aos passos lentos e forçados do velho berrando de longe.
Chiwiza se avizinhou do local onde diariamente passa as noites e refeições solitárias, partido e quase cego, despiu a enxada, atirou a lenha num canto e, sem se aperceber, introduziu-se no imaginário. Quando ergueu a cabeça em jeito de alívio notou que a sua pobre palhota fora evacuada pelas águas das chuvas e engolida pelo rio que corria a sete pés, Chiwiza também engolido pelo desespero passou a noite debaixo de uma árvore e cobriu chuviscos nas primeiras horas da sua lucidez…
Neto Saete