Mais de mil camponeses do povoado de Wakhua, no posto administrativo de Lioma, na fronteira entre as províncias da Zambézia e Nampula, foram desapropriados das suas terras pela empresa brasileira AGROMOZ, para dar lugar à produção de soja, numa área de cerca de três mil hectares. A população abrangida foi enganada com compensações que não correspondiam aos bens que possuíam, num processo pouco transparente. Além de não terem sido reassentadas, as vítimas não tiveram acesso a novos espaços para prosseguirem a sua actividade de cultivo de alimento para a sua subsistência e a dos seus respectivos agregados familiares.
Alguns foros de camponeses do posto administrativo de Mutuali, distrito de Malema, na província de Nampula, condenam algumas iniciativas do Governo no que tange ao reassentamento de algumas comunidades daquela circunscrição geográfica. Essa acção está aliada à expropriação de terra dos agricultores para dar lugar a projectos de agro-negócio.
Este repúdio surge na sequência do aparecimento de alguns agricultores brasileiros em dois distritos das províncias de Nampula e Zambézia, nomeadamente, Malema e Gurúè, concretamente nos postos administrativos de Mutuali e Lioma, respectivamente, que se dedicam ao agro-negócio, expropriando as terras dos camponeses destas regiões, e transformando os proprietários em seus empregados.
De acordo com Pedro Carlos, representante do Fórum de Camponeses de Niapaca, em Mutuali, o alerta surge na sequência do despejo de cerca de mil camponeses do regulado de Wakhua, no posto administrativo de Lioma, que faz fronteira com o povoado de Nakarari, no posto administrativo de Mutuali, distrito de Malema. Segundo aquele responsável comunitário, os mais de mil camponeses, que viram as suas terras expropriadas no ano de 2012, para dar lugar ao projecto de produção de soja em Lioma, pelo grupo brasileiro AGROMOZ, foram obrigados a imigrarem para Mutuali à procura de terra para a abertura de hortas.
“A cada dia que passa recebemos famílias que pedem emprestado uma parcela de terra para abrirem as suas machambas e construção de habitação, porque perderam os seus respectivos espaços ”, disse Carlos. O nosso interlocutor referiu-se, igualmente, à falta de transparência no processo de atribuição do Direito de Uso e Aproveitamento de Terra (DUAT) aos agricultores estrangeiros pelo Governo, com vista a evitar o surgimento da comunidade dos “sem terra” naquela circunscrição geográfica, o que poderá resultar em convulsões sociais, no empobrecimento das populações afectadas e na redução de alternativas de sobrevivência.
Agostinho Mocernea, secretário do povoado de Nakarari, no posto administrativo de Mutuali, local que está a receber uma avalanche de camponeses à procura de terra para a abertura de machambas e construção de residências, afirmou ter testemunhado todo o processo de alocação do espaço ao projecto dos brasileiros, que envolveu o governo provincial da Zambézia e a liderança local, através do régulo Nakarari. Mocernea referiu ainda que alertou ao seu homólogo sobre a necessidade de acautelar todos os processos, mas este não levou em consideração a chamada de atenção, até porque foi aliciado com valores monetários.
“O processo teve início no ano de 2012 e, na altura, fomos informados de que o projecto AGROMOZ pretendia apenas uma área estimada em cerca de 200 hectares para a abertura de um campo de experimentação do poder germinativo de sementes de algumas culturas com destaque para soja, milho e feijão”, disse Mocernea, tendo acrescentado que se alegava que o mesmo seria benéfico para a população local porque surgiriam postos de trabalho para os jovens. Durante a desapropriação de terra, a AGROMOZ prometeu a construção de um posto de saúde e uma escola, mas, volvido um ano, nada foi feito.
Pelo contrário, após a população ter cedido a área, os agricultores foram retirados do local, tendo recebido um valor que variava entre dois mil e seis mil meticais. O nosso interlocutor afirmou ainda que as primeiras compensações às populações eram feitas numa das salas de uma escola primária instalada na região, tendo os camponeses sido convocados para uma reunião onde se simulavam a divulgação de orientações saídas do governo do distrito de Gurúè, acção promovida pelo régulo Nakarari.
“Tratando-se de regulados diferentes, eu tentei aproximar-me do régulo Nakarari para alertar do perigo que aquela acção representava, mas este não me deu ouvidos. Ele recebeu o dinheiro e ordenou a retirada da população. O resultado disso é o que temos vindo a assistir nos últimos dias: centenas de famílias a viverem à deriva”, disse o líder comunitário.
De acordo ainda com Agostinho Morcenea, em 2012, a AGROMOZ trabalhou numa área de cerca de 500 hectares e, no ano seguinte, subiu para mais de mil, concretamente nas zonas onde a população foi retirada, o que está a levantar várias críticas e contestações no seio dos camponeses.
População obrigada a ceder as suas terras
Mariana Narocori nasceu no povoado de Wakhua em Lioma, na província da Zambézia, onde passou a sua infância. É mãe de três filhos, dos quais dois tiveram de interromper as aulas, devido à mudança de residência da família, em resultado da cedência da sua área ao projecto AGROMOZ.
Aquela camponesa explica, ainda, que logo que o processo de concessão de terra iniciou, ela foi convocada a participar numa das reuniões orientadas pelo régulo, o qual anunciava a retirada obrigatória da população a fim de dar lugar ao projecto da AGROMOZ.
“Fui obrigada a assinar um documento de cujo teor não tive acesso, e recebi apenas 4.500 meticais. Volvida uma semana, apareceu uma escavadora, demoliu a minha casa e destruiu as minhas culturas. Fiquei sem abrigo e tive de recorrer ao povoado de Nakarari onde me foi cedida uma parcela de terra na qual construí a minha habitação e faço machamba para sobreviver”, disse.
A nossa interlocutora referiu, igualmente, que receia que não venha a obter uma boa produção no seu novo campo de cultivo por ter iniciado tarde a actividade agrícola. “Não tinha outra alternativa, tive de fazer uma palhota sem quarto para nos abrigar e, também, aproveitei a segunda época agrícola para a assegurar algumas culturas alimentares, mas, para a comercialização, não fui a tempo”, afirmou.
Fernando Quinakhala, residente em Lioma, foi também um dos afectados pelo projecto AGROMOZ. Casado e pai de cinco filhos, ele sobrevive da agricultura e perdeu uma área de 3.5 hectares, parcela que herdou dos seus ancestrais. No acto da compensação, a AGROMOZ decidiu que Quinakhala devia receber apenas 6.500 meticais, valor que, segundo o camponês, não corresponde às suas antigas propriedades. “Eu não aceitei o valor porque era bastante irrisório”, disse.
Aquele agricultor afirmou ainda que na área na qual foi obrigado a abandonar produzia em média 40 sacos de milho, 20 de feijão, entre outras culturas, contra os actuais 10 de milho e dois de feijão.
“Não tenho outra opção, senão lamentar. Vamos recorrer a todos os mecanismos de modo a inviabilizar o projecto”, afirmou Fernando Quinakhala tendo acrescentado que “ficámos alegres com o anúncio da construção de uma unidade sanitária, mas até aqui nada foi feito e continuamos a percorrer longas distâncias à procura de serviços de saúde”.
Pulverização aérea prejudica comunidades circunvizinhas
De acordo ainda com a população local, depois de ampliada a área dos 500 hectares para mil e introduzida a produção de soja em Lioma, a AGROMOZ iniciou o processo de pulverização aérea, que teria provocado problemas respiratórios nas famílias que vivem nas imediações do projecto, para além de impedir o desenvolvimento de várias culturas alimentares.
“Na campanha agrícola 2013/2014, apareceu um grupo de trabalhadores da AGROMOZ a comunicar que, na altura da pulverização que seria feita por uma avioneta, as pessoas tinham de abandonar as suas casas como forma de se prevenirem duma eventual intoxicação provocada pelo medicamento”, disse Agostinho Mocernea.
Passados alguns dias, quase todos os residentes começaram a padecer de gripe e as plantas morreram. O caso foi notificado à empresa que, por sua vez, enviou uma equipa para analisar a situação, tendo confirmado o facto. Pelo menos no que tange às culturas, a firma prometeu efectuar a devida reposição, mas nada foi feito.
Governo desvaloriza as reclamações dos camponeses
O @Verdade abordou Elídio Bande, director Provincial de Agricultura na Zambézia, a propósito das inquietações dos camponeses em Lioma. Segundo aquele responsável, não houve expropriação de terra naquela parcela do país, pois o processo seguiu todos os trâmites legais.
De acordo com Bande, os intervenientes no projecto, nomeadamente a população local, os líderes comunitários e os proponentes da iniciativa, realizaram duas consultas comunitárias na região em alusão e uma audição pública, que culminaram com a cedência de terra para dar lugar ao projecto de produção de soja para alimentar o mercado nacional.
O Governo concedeu ainda em Outubro corrente o DUAT à empresa AGROMOZ numa área de nove mil hectares em Lioma para um período de mais de 40 anos de exploração. Esta medida não coaduna com o preconizado na lei, segundo a qual a concessão de terra é feita dois anos depois da exploração experimental da área pelo operador. No que tange à pulverização aérea, o nosso interlocutor revelou que a mesma é permitida no país, desde que siga os padrões plasmados para o efeito, pelo sector ambiental.
AGROMOZ refuta as acusações
O representante da AGROMOZ, identificado apenas pelo nome de Haine, de nacionalidade brasileira, distancia-se das irregularidades registadas no processo de implantação do projecto, mas confirma que, numa primeira fase, as atenções estavam viradas para a criação de um campo de experimentação de várias sementes da cultura de soja, a fim de se identificar a semente com grande poder germinativo e produtivo para uma agricultura de grande escala.
Haine não se pronunciou em torno das irregularidades apresentadas pelos camponeses, mas disse que, para a presente época agrícola, o grupo brasileiro AGROMOZ propõe-se explorar uma área de cerca de 1.600 hectares, prevendo colher 2.300 toneladas de soja.
O nosso entrevistado revelou que a empresa compromete-se a corrigir todos os erros causados pelo projecto, desde que os mesmos sejam apresentados formalmente e com provas. O encarregado da AGROMOZ referiu, ainda, que houve uma manifestação de interesse por parte de uma empresa japonesa no que tange ao fornecimento de quantidades significativas de soja, mas ainda não há dados novos, devido ao nível de exigências que o processo requer.
“Trata-se de um processo que acarreta muitos investimentos em fertilizantes e procedimentos burocráticos para a sua exportação”, disse. Segundo Haine, o processo de abertura de campos para a experimentação de novas variedades com maior poder produtivo vai prosseguir e pretende- -se aliar a experimentação à produção de milho e feijão para se vender à população local.
Projectos de responsabilidade social em “banho-maria”
No âmbito da responsabilidade social, a AGROMOZ teria prometido a construção de uma unidade sanitária para reduzir as longas distâncias que a população daquela região percorre à procura de serviços de saúde.
Os populares contaram que, logo nos primeiros meses de implementação do projecto, o grupo AGROMOZ simulou a colocação de uma tenda que era utilizada para se realizar tratamentos hospitalares à população, mas a iniciativa não passou de sol de pouca dura. Volvidas duas semanas, a mesma foi removida, deitando por terra todas as aspirações da população, sobretudo das mulheres grávidas.
“Temos um projecto em carteira para a construção de uma unidade sanitária e de uma escola. Estamos à espera de contactos que estão a ser efectuados pela direcção da empresa a nível central com os respectivos sectores de Saúde e Educação, no que diz respeito à alocação de meios humanos e parte do material para equipar a escola e o posto de saúde”, afirmou o encarregado da AGROMOZ.
Sociedade civil insurge-se contra o projecto
Sheila Rafi, coordenadora dos Recursos Naturais da Livaningo, uma organização que trabalha para o bem-estar das comunidades em Moçambique, disse ter ficado sensibilizada com a situação por que passa as populações de Lioma e Mutuali, sobretudo as que se encontram nas imediações da empresa AGROMOZ.
“Não se pode por lei expulsar as comunidades dos seus lugares e não se proceder a um reassentamento digno. Isto é irresponsabilidade dos nossos governantes que teimam em compactuar com este tipo de práticas que atentam contra o bem-estar da nossa população”, afirmou.
De acordo com aquela coordenadora, o processo de compensações realizado pela AGROMOZ em Lioma não foi legal, à semelhança do que se passou com as populações abrangidas pelo projecto da estrada circular de Maputo, Vale em Tete, entre outros.
“Já era altura de o Governo colocar um ponto final nos reassentamentos ilegais e mal feitos. Se um régulo foi forçado a ceder as terras, era responsabilidade dos governos de Gurúè, na Zambézia, e de Malema, em Nampula, criarem condições para que o processo ocorresse de forma transparente e correcta”, disse.
Rafi instou o Governo e as organizações da sociedade civil a concentrarem esforços no sentido de forçarem os investidores a cumprirem a legislação moçambicana, bem como os padrões internacionais que regem este tipo de investimentos em terras comunitárias.
Futuro incerto para os afectados
De acordo ainda com Sheila Rafi, para as comunidades que foram expulsas das suas terras e obrigadas a abandonar as suas culturas, não se vislumbra nenhum futuro digno, pois grande parte delas está a viver na província de Nampula por solidariedade de um familiar. Muitos agricultores passaram de senhores dignos produtores dos seus alimentos para pessoas saqueadoras das culturas dos outros.
A título de exemplo, alguns camponeses foram presos por roubarem produtos pertencentes à AGROMOZ. “Quem perde o seu campo de culturas tem de esperar até à campanha seguinte para produzir alimento. A nossa questão como organização que trabalha para a defesa e o desenvolvimento das comunidades é: que benefício os moçambicanos têm ao aceitarem o agro-negócio no país?”, questionou a coordenadora.
Segundo Rafi, a Livaningo irá apresentar uma exposição à Direcção Provincial da Agricultura acerca das principais constatações, exigindo que o Governo faça algo para devolver as terras ocupadas, ilegalmente, ou no mínimo para que se realize uma compensação digna das perdas. Falando a propósito dos pesticidas, a nossa interlocutora prometeu apresentar o assunto ao Ministério da Agricultura, para que se possa encontrar outras alternativas de pulverização antes que esse processo culmine com a desgraça das populações.
“Muitas famílias queixam-se de que os filhos contraíram problemas respiratórios e os seus campos de cultivo estão queimados. Ainda não temos elementos científicos para afirmar que se trata de pesticidas. Mas poderemos chegar à alguma conclusão obviamente de que isso irá incluir análises laboratoriais de amostras do solo e da água das comunidades”, rematou a coordenadora da Livaningo.