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Bob Dylan canta para os pretores

O músico influenciou toda uma geração de advogados e juízes norte-americanos – a ponto de muitas vezes citarem o artista nas suas alegações e veredictos.

Em meados dos anos 1960, nas noites de Verão, o aparelho de televisão a preto e branco crepitava na sua casa, em Staten Island, Nova Iorque, difundindo informações sobre o Vietname e os surtos de violência que grassavam no Sul do país (em resposta ao movimento pelos direitos dos negros norte-americanos).

Bobby Lasnik ia então para o quarto, deitava- -se na cama e deixava o hino do movimento pelos direitos civis penetrar na sua alma sensível de adolescente. Ligado à estação de rádio WBAI, ouvia lamentos carregados de injustiça, canções que teria presentes para o resto da vida.

“De repente, alguém usava a linguagem da verdade, era uma coisa que não era costume ouvir-se na rádio”, conta Bobby Lasnik, ao recordar a primeira vez que escutou uma canção de Bob Dylan. “Nem me lembro de que música era, mas adorei o imaginário, as palavras – palavras que nunca tinha pensado em associar – e as ideias que provocava na cabeça ao ouvi-las.”

Agora, o imaginário circula no sentido inverso. O juiz Robert Lasnik – que hoje é tratado por meritíssimo e não por Bobby – é conhecido por invocar o poeta errante nas decisões do Tribunal Federal de Seattle. Foi buscar excertos de Chimes of freedom, num caso que punha em causa a legalidade da detenção sem julgamento, e The times they are a-changin, o grito de guerra do Movimento dos Direitos Civis, num julgamento que fez história, em que a exclusão de meios de contracepção do plano de seguro e medicamentos dos funcionários pela entidade empregadora passou a ser delito de discriminação sexual.

Lasnik não é o único a inserir o lirismo contestatário de Dylan no discurso jurídico em vigor. Alguns juristas analisaram a infl uência do cantor no mundo jurídico actual. Veredicto: nenhum outro músico foi tão frequentemente citado pelos tribunais. De decisões do Supremo Tribunal até a cursos de Direito, os textos de Dylan são retomados para ilustrar os equívocos da lei e dos tribunais.

As suas letras icónicas de protesto, Blowin in the wind e The times they are a-changin, deram voz a manifestações pela paz e pelos direitos civis. As suas baladas mais incisivas, The lonesome death of Hattie Carroll e Hurricane, inspiram os “retratos jurídicos” do nosso tempo, mostrando a que ponto a música é capaz de veicular uma ideia.

Se a música e os valores de Dylan permeiam o sistema jurídico norte-americano, isso deve-se ao facto de as suas músicas terem marcado os anos de formação dos juízes e advogados que hoje povoam os tribunais, as universidades e os grandes escritórios de advocacia, explica Michael Perlin.

Professor da New York Law School (uma faculdade de Direito independente da Universidade de Nova Iorque), cita textos e títulos de Dylan em pelo menos cinco dezenas de artigos publicados em diversas revistas jurídicas. Como muitos outros, Perlin enveredou pelo Direito enfeitiçado pelo canto de sereia moral de Dylan nos anos 1960.

Essas canções desempenharam um papel determinante na aprovação da Lei dos Direitos Civis de 1964, que combinava as directivas federais para garantir penas de prisão mais equitativas com reformas processuais que proibiam a discriminação racial.

“As pessoas gostam de acreditar que a música que ouvem diz algo sobre a sua personalidade”, comenta Alex Long. Este professor de Direito na Universidade do Texas, de 41 anos, trabalhou sobre a influência da canção de intervenção no mundo jurídico.

“Os juízes têm um quotidiano bastante enclausurado, as suas decisões são congeminadas em isolamento. Dylan era popular numa época em que os juízes de hoje estavam a entrar na idade adulta e tentavam perceber quem eram. Quando a oportunidade surge, é tentador colocar um verso do seu artista favorito; é uma forma de mostrar singularidade”, acrescenta Alex Long, cuja infância, passada junto do gira-discos dos pais, se alimentou dos sonhos de Dylan.

Em 2007, durante todo um semestre, Alex Long passou a pente fino as bases de dados jurídicas para detectar as músicas mencionadas nos registos dos tribunais e em artigos em publicações especializadas. Daí resultou o seguinte top 10: Dylan, à cabeça, com 186 citações, muito à frente dos Beatles (74), Bruce Springsteen (69), Paul Simon (59), Woody Guthrie (43), Rolling Stones (39), Grateful Dead (32), Simon & Garfunkel (30), Joni Mitchell (28) e R.E.M. (27).

Uma das frases mais vezes citada é extraída de Subterranean homesick blues, que é um dos dez maiores êxitos de Dylan. Meia dúzia de julgamentos de tribunais da Relação da Califórnia refere-o quando querem expressar a ideia de que um parecer pericial não é necessário para provar o óbvio para os leigos: “You don’t need a weatherman/To know which way the wind blows” (Não é preciso um meteorologista / para saber de que lado sopra o vento).

Na óptica de Abbe Smith, professora da Georgetown Law School, Hattie Carroll é “uma balada quase perfeita, uma história e simultaneamente uma lição”. A canção de Dylan denuncia uma injustiça: a história de William Zantzinger, um jovem rico, membro da alta sociedade de Maryland, condenado a apenas seis meses de prisão por ter espancado até à morte uma criada negra que demorou muito a levar-lhe o copo de água que tinha acabado de pedir.

A rapariga chamava-se Hattie Carroll. Os fãs de Dylan que hoje ensinam Direito integraram esta balada nas suas cadeiras. Também citam Hurricane, que conta a história do processo por assassínio do boxeur Rubin Hurricane Carter, em Paterson, Nova Jérsia. Para eles, ambas as canções são uma fonte de inspiração para os futuros advogados.

A história de Hurricane Carter é paradigmática. Durante uma operação stop, a polícia de Paterson encontrou cartuchos que ligavam Carter a um triplo assassínio. Elementos que deveriam ter sido excluídos do processo de acusação. De facto, durante a operação de trânsito, a polícia não tinha “suspeita razoável” contra o jogador de boxe, e os cartuchos não eram portanto provas admissíveis, considera Allison Connelly, professora de Direito na Universidade de Kentucky.

Segundo ela, este processo é um caso de estudo perfeito para os jovens advogados, no sentido de se determinar o valor da pesquisa de provas e questionar a versão dos factos apresentada pelas autoridades. Pede aos alunos que trabalhem a partir do texto de Dylan, no intuito de identifi carem vícios na teoria do Ministério Público, encontrarem testemunhas e estabelecerem horários paralelos destinados a criar um álibi para o acusado.

All of Rubin’s cards were

marked in advance

The trial was a pig-circus

he never had a chance.

(As cartas de Rubin estavam todas

marcadas com antecedência.

O julgamento foi um circo policial. n

ão tinha qualquer hipótese.)

A canção conta a história de polícias racistas, um juiz desonesto e um júri parcial, que enviou Carter para trás das grades com dupla condenação perpétua. No entanto, um juiz federal conseguiu (em 1985) anular a condenação de Carter, alegando que a acusação tinha sido “baseada mais no racismo do que na razão”.

Allison Connelly considera que a versão de Dylan, que vê neste caso uma armadilha, pode ter infl uenciado a promulgação e aplicação de leis proibindo operações stop sem motivo e impedindo os queixosos de demitir um jurado por critérios de raça.

Um dos primeiros grandes processos de Robert Lasnik, após ter sido nomeado para o Tribunal Federal pelo Presidente Clinton, em 1998, envolvia imigrantes ilegais, passíveis de expulsão e detidos há vários anos. Nessa ocasião, o juiz citou Chimes of freedom, recordando a simpatia do artista pelos oprimidos e vítimas de maus tratos.

We ducked inside the doorway,

thunder crashing

As majestic bells of bolts

struck shadows in the sounds

Seeming to be the chimes

of freedom flashing

Flashing for the warriors

whose strength is not to fight

Flashing for the refugees on the

unarmed road of flight

An’for each an’ev’ry underdog

soldier in the night

An’we gazed upon the chimes

Of freedom flashing.

(Acocorávamo-nos no alpendre,

com trovões ribombando

Enquanto sinos majestosos de luz

combatiam ruidosamente as sombras

Como se fossem clarões

dos carrilhões da liberdade

Luzindo pelos guerreiros cuja

força é não lutar

Luzindo pelos refugiados

na desarmada estrada da fuga

E por cada soldado desfavorecido

perdido na noite

E ficávamos a ver o clarão

dos carrilhões da liberdade.)

Se juízes como Robert Lasnik, hoje com 60 anos, prestam homenagem a Bob Dylan, o respeito não parece mútuo, sublinha David Zornow, sócio do escritório nova-iorquino da firma de advocacia Skadden, Arps, Slate, Meagher & Flom: “O tipo não diz nada bem dos juízes”. Nos volumosos arquivos de canções do artista, só encontrou duas referências a juízes humanos e profissionais. A maioria manifesta a corrupção e a instabilidade de humor dos magistrados. E, como um suspeito que invoca o direito de permanecer calado, Dylan recusa-se a comentar o seu papel como musa dos juristas.

As palavras de Dylan são muitas vezes associadas a textos de esquerda, mas as duas citações nos acórdãos do Supremo Tribunal dos Estados Unidos são feitas por conservadores. Assim, em 2008, quando o presidente do Supremo Tribunal, John Roberts Jr., decidiu que as empresas de cobrança contratadas pelos operadores públicos de telefones não podiam processar os clientes, pois não tinham qualquer direito sobre o dinheiro que recolhiam, citou (livremente) Dylan: “When you ain’t got nothing, you’ve got nothing to lose” (Quando não se tem nada, não se tem nada a perder, em Like a rolling stone).

No ano passado, o juiz Antonin Scalia fez referência a Dylan ao repreender os seus colegas do Supremo Tribunal de Justiça porque continuam sem legislar sobre a questão, em constante mutação, do direito à protecção da vida privada dos funcionários através do endereço de email da empresa. O seu argumento foi: “Dizer que ‘os tempos mudam’ (times they are a-changin’) é uma má desculpa para se eximir dos seus deveres “.

Robert Lasnik também fez referência a The boxer, de Paul Simon, a propósito da ignorância deliberada dos homens: “A man hears what he wants to hear and disregards the rest” (Um homem ouve o que quer ouvir e ignora o resto). E finge-se chocado com a imitação do seu hábito de invocar Dylan por outros juízes: “Quando o presidente do Supremo Tribunal, John Roberts, citou Dylan, pensei: “Oh não! Agora deixou de ser fixe!”.

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