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Bitonga Blues – Um homem estranho arrastando-se como um leão ferido nas patas traseiras

Bitonga Blues - Comprou chocolates e rosas para uma criança que já havia morrido

Tem o peito largo, bem desenhado, forte, braços robustos e mãos de ferro. Parece um leão ferido nas patas traseiras quando se move. Arrasta as pernas – deformadas à nascença – puxando-as com os braços e as mãos, mãos estas que poderão, sem que ele se aperceba, passar por cima de fezes e objectos cortantes, que lhe poderão ferir a pele calejada e já quase insensível. Este homem também vai-me lembrar uma cobra enorme, que rasteja pelas matas e por outros espaços, com a cabeça levantada, sem se preocupar com qualquer material contundente.


Tenho-o visto regularmente nas manhãs, desafiando os carros que enchem as estradas. Por vezes vem acompanhado de uma criança, que traz os livros no regaço, a caminho da escola. Uma criança que me provoca amor e lágrimas pois, ao lado do homem – que eu penso ser seu pai – esta menina vai passando a mão, suavemente, por sobre as costas da figura que vai ao encontro da vida, como quem diz: cuidado papá!

 

Já me perguntei várias vezes se o homem que se arrasta como uma cobra, ou como um leão ferido nas patas traseiras, não terá já sido cortado por um objecto qualquer nas suas caminhadas diárias. Mas também Deus não é criança: se Ele nunca permitiu que as cobras sejam feridas nas matas, como é que vai deixar que um homem – que é superior às cobras – seja ferido? E eu regularmente tenho visto este personagem desafiando cacos de vidro espalhados pelos caminhos, e carros que enchem todos os dias as estradas de Maputo e os subúrbios de Maputo.

Se existe uma beleza dolorosa na vida que Deus criou, então uma parte dessa beleza é a movimentação deste homem, que tem o peito largo, bem desenhado, forte, braços robustos e mãos de ferro. Traz sempre uma camisa lavada e engomada e enfiada nos calções fortificados por um cinto fino, numa cintura fina que parece de um leão sereno, mas muito feroz. As pernas, a partir dos joelhos até a ponta dos pés, são inúteis. A vida parece terminar nos joelhos, enrijecidos pelas pedras do caminho e pela própria areia.

É um belo espectáculo vê-lo arrastar-se, com a sua criança ao lado, que afaga, de quando em quando, o lombo do homem, como que estando a dizer: cuidado papá! E ele avança. Resoluto. Conhece muito bem o caminho que se propôs trilhar, ou o caminho que a vida lhe oferece. Parece estar a levitar, quando rasteja. Dá a impressão de estar a dançar uma música que, nós – humanos normais – não vamos ouvir. Mas ele dança com o peito e os braços e cintura, fina de leão.

Ele nunca protege as mãos com luvas, nem os pés, com sapatos. E eu me pergunto: se um dia ele quiser devolver a carícia que a filha lhe faz nas costas, com aquelas mãos duras como as pedras, de que forma o fará? Certamente que vai morrer sem passar a mão pela face da filha, em amor. Ele provavelmente o deseje de forma ardente, porém, não pode ferir a pele suave e pura da filha. Ou, se o quiser fazer, terá que ser pelas costas dessas mesmas mãos, empedradas.

A filha sabe disso: sabe que o pai não a vai afagar com a doçura da palma das mãos. Mas sabe que o pai a ama muito. Ama muito a mãe, que aceitou que aquela cobra-leão dormisse com ela e fizesse aquela miúda, que leva todos os dias os livros no regaço e afaga as costas do homem, que desafia os carros que enchem as estradas, como quem diz: cuidado papá!

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