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Bitonga Blues – Quanto mais embriagados, mais lúcidos

Bitonga Blues - Comprou chocolates e rosas para uma criança que já havia morrido

Chegaram a um ponto em que, quando falavam, já não pareciam eles a fazê-lo. A conversa emanada naquela tertúlia de bar, fazia-nos descobrir, em cada palavra, dois intelectuais com estrutura muito forte. As ideias eram alinhavadas com saber e, os gestos, comedidos, escondiam duas figuras que nos vão oferecer uma enxurrada de informações espectaculares distribuídas pelo mundo da cultura geral. São dois personagens muito jovens e bem educados e elegantes e bem parecidos e sedutores e desconhecidos. Não falavam nem alto, nem baixo, mas a um tom que dava para ouvi-los perfeitamente da mesa onde me encontrava e perceber que um, tinha no português, que articulava com bastante equilíbrio e inteligência, um sotaque nyúngwè e o outro falava sem esconder o changana por debaixo da língua.

Estão a beber a sério. Bebem e conversam. Abordam temas sérios como agora que um deles diz sem preconceitos: não nos podemos comparar com a África do Sul. Os thloza e os zulu, são tribos muito fortes e trazem consigo uma história que inclui sangue. Há um rastilho permanentemente aceso, com duas dinamites em cada um dos extremos e, só isso, basta para perceberes que a questão tribal na África do Sul, particularmente entre os zulu e os thloza, não pode ser colocada da forma como nós a colocamos em Moçambique.

O outro jovem, quando ouviu estas palavras, ditas pelo seu companheiro, pediu mais um duplo de whisky, bebida que devoravam desalmadamente, petiscando castanhas. Continuavam serenos, mas espiritualmente endiabrados porque, cada palavra libertada, depois de cada gole tragado, trazia ao de cima dois homens com lucidez espantosa. As outras mesas, como que electrizadas, enfeitiçadas pela conversa da mesa da juventude, despronunciavam-se, como se fossem passarinhos tranquilos em noites de trovoadas e relâmpagos e chuvas.

Sabes, dizia o outro com o tronco curvado para o tampo da mesa e com o dedo médio a girar as pedras de gelo no copo cheio de scosh: na verdade, no nosso país, a questão do tribalismo, mesmo que ainda tenha alguns laivos de fogo, não terá, por enquanto, as lavras necessárias para criar uma destruição. Para já, tu que és nyúngwè, tens uma mulher chope e o teu filho é machangana. Ademais, o teu filho não fala nem a tua língua, nem a língua da tua mulher, nem a língua da terra onde ele nasceu. Para mim, a desgraça é isto: o desaparecimento das nossas línguas, dos nossos valores culturais. Isto é que me preocupa.

Os dois recostaram-se quase ao mesmo tempo nas suas cadeiras, olhando-se firmemente um para o outro, como que querendo perscrutar o pensamento do companheiro. A plateia, ou melhor, as mesas que estavam próximas dos dois jovens, ficaram definitivamente conquistadas. Eles falavam como uma tal eloquência que não parecia terem ultrapassado há muito tempo a fasquia do décimo duplo de scosh cada um.

– Mas vocês os machanganas ainda não estão preparados para receber um presidente xingondo!

– Os machanganas de que falas estão velhos. O país pertence a nós os jovens. A jovens como Davis Simango, que seria, a ser eleito presidente, aclamado por todas as tribos. Moçambique já não tem tribos, porque as tribos que ainda existem, estão a morrer. E isso é bom para um país como o nosso, que é o país do futuro.

– Como é que tu vais considerar país do futuro, uma pátria que não falará, nesse tempo, nenhuma língua nacional? Isso me preocupa muito porque nas universidades, onde já se abriram faculdades para as nossas línguas, não está lá ninguém. Os jovens não demonstram nenhum interesse pelas línguas dos seus antepassados.

– E tu, tens algum interesse?

Os dois jovens riram-se a bandeiras despregadas e pediram mais um duplo cada um, que bebiam, festejando a vida e o conhecimento e seduzindo e conquistando a todos que os ouviam. Era princípio de noite de um sábado que ficará – por algum tempo – na memória daqueles que acompanharam a celebração da existência de duas figuras que se mostraram superiores ao tribalismo. De dois personagens que bebiam whisky a construir o país.

– Tu próprio sentes-te complexado em falar changana onde há gente que consideras fina. E és doutorado em sociologia! Isso para mim é mesquinhez. És pequenino!

– E os sul-africanos não têm esse problema!

– Estás a ver! Agora como é que vamos aqui querer nos comparar, em termos culturais, a eles, que falam zulu e tloza e todas as línguas sul-africanas em todo lado?

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