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Bitonga Blues – Elegia ao ajudante de camionista

Bitonga Blues - Estou em Tete

Há muito tempo que tenho vindo a ruminar um desejo irreprimível que mora dentro de mim, varando-me o coração e a alma todos os dias. Tu nem sabes que tenho esse sentimento por ti, nunca imaginaste que um indivíduo como eu, que mora na cidade, dorme numa casa que, sem ser rica, não será propriamente pobre, se possa preocupar contigo, pensando em todo aquele castigo e sofrimento que vais ter nas longas estradas que passas a vida inteira a percorrer, empoleirado na mercadoria como se fosses uma rês sem qualquer valor.

Sabes, irmão, quando te vejo naquela imensa plataforma, cheia de produtos diversos, levados para vários destinos, e tu, como fazendo parte da bagagem, a primeira coisa que faço é amaldiçoar o patrão do motorista do camião e depois amaldiçoo também o condutor, que não se importam contigo, querem lá saber se podes cair ou não ao longo do percurso, na eventualidade de cederes ao cansaço e ser abatido pelo sono! E tu estás sozinho lá em cima, como um pássaro de mau agoiro.

Vais para a frente, mas de costas, porque não vais suportar a corrente provocada pela velocidade do camião que por vezes atinge os 140 quilómetros por hora. E tu tens de viajar de costas! Irmão, já tens muita experiência dessas andanças de perigo a que te sujeitas todos os dias, mas não tens onde ir. Sempre que vais a um lugar qualquer, nas viagens incessantes, voltas mais empedernido, a expressão do teu rosto endurece em cada viagem e já chegaste a um ponto em que parece fazeres parte da poeira e dos ventos e das chuvas que te castigam quase sempre. Eu sinto tudo isso, meu irmão.

Por ti. E tu nem me conheces. Provavelmente nunca me viste e provavelmente nunca ouviste falar de mim. Sabes, meu querido, o maior problema para mim é que o condutor desse camião moderno que leva a mercadoria e a ti também como mercadoria inútil, viaja confortavelmente na cabina, num ambiente climatizado. Tem lá muito espaço e tu caberias, com certeza, nesse lugar, sem problema, porém, nada! Estás lá fora e tens a consciência plena de que a primeira chuvada que vier para o vosso camião, tu serás a única vítima porque a mercadoria está protegida com uma lona grossa e bem amarrada. Nenhum grão de arroz vai molhar, nenhuma porção de cimento.

Só tu meu irmão é que vais fi car como uma albufeira, entretanto, sem capacidade para gerar energia. Tu sabes de tudo isso. Quando vês o sol nublado lá à frente, já não tremes, até chego a pensar que te tornaste masoquista, mas não, não podes ser masoquista. E eu não suporto ver-te naquelas condições, como uma ave amaldiçoada, sem ninguém, sem que ninguém se preocupe contigo, nem o condutor que viaja contigo, com a diferença de que ele está na cabina, confortável, climatizada, com coleman para bebidas geladas e cama para dormir com as mulheres ocasionais que ele vai encontrando pelo caminho, ou com as quais sai daqui. O condutor está feliz lá dentro e tu cá fora, como um cadáver rebuscado para servir apenas de besta de carga!

És o único saco na plataforma que pode molhar, pior do que isso, que pode cair e fi car esparramado, não importa, há muitos homens desempregados por aí, que irão substituir o teu lugar, tu podes morrer, não és nada, és uma besta de carga. Podes cair e morrer, o valor do teu produto não presta para nada. Vais dormir debaixo do chassis, bebendo aguardente reles e comendo xima e carne fria comprada nas barracas imundas que andam por aí. Mas o condutor vai dormir na cama da cabina, com a mulher ocasional ou com uma que levará daqui, comendo comida aquecida no fogão aprovisionado e bebendo bebidas geladas.

E tu, meu irmão, por debaixo do chassis, agora como um chacal. Será debaixo desse chassis que vais morrer, no dia em que, de lá de cima, voarás cá para baixo, no sono do cansaço e da bebedeira da aguardente da pior qualidade que terás consumido durante a noite inteira, apanhando frio enregelador. Não dormirás em paz, naturalmente, pois o teu corpo será sacudido, a espaços, por bichinhos que compartilham contigo a esteira encardida que vai andar sempre contigo.

Já deixaste de ser uma pessoa, és uma escória, meu irmão. Nunca te deliciaste com a paisagem que vestes todos os dias pendurado nessa maldita plataforma, mas também como é que uma pessoa que vai para a frente de costas, pode sorver a beleza do mundo, pior do que tudo, apanhando correntes, quentes e frias, chuvas, até se transformar numa albufeira?

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