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As doenças que a chuva esconde

As doenças que a chuva esconde

Apesar de tornar o ar mais húmido e constituir um sinal de boa colheita para os agricultores, as chuvas têm também um lado negativo que, nalgumas vezes, pode ser catastrófico, dependendo da área em que ela se faz sentir. Mas não é só a chuva que preocupa as pessoas, mas sim as suas consequências. Fora as inundações, ela pode ser o prenúncio da eclosão de uma série de doenças, principalmente nas zonas com um deficiente sistema de saneamento, como acontece na maior parte do país.

Depois da passagem da tempestade tropical Dando e do ciclone tropical Funso, que fustigaram Moçambique nas duas últimas semanas, espera- -se que ocorram doenças diarreicas devido ao desenvolvimento de vectores de transmissão, o que não constitui novidade para as nossas autoridades sanitárias nem para os residentes dos bairros com problemas de saneamento, uma vez que todos os anos, sempre que chove intensamente, o país tem assistido ao surgimento de epidemias tais como a cólera, a malária e as diarreias.

É nesta época (e não só) que as populações e as autoridades sanitárias devem estar atentas a sintomas como febre, dores de cabeça e outros que podem representar uma ameaça à saúde pública.

Tanto a cólera como a malária, são doenças que tendem a ganhar mais espaço quando chove, isto porque os seus agentes causadores, no caso concreto do mosquito Anopholes para a malária e o vibrião colérico, bactéria causadora da cólera, tendem a habitar em lugares húmidos, nomeadamente nos charcos e noutros locais que apresentem condições favoráveis à sua multiplicação.

No bairro de Chamanculo, na cidade de Maputo, onde muitas famílias ficaram desalojadas e viram as suas casas alagadas, as consequências foram desoladoras. As crianças foram as principais vítimas das doenças oportunistas, típicas deste período.

Águas provenientes dos esgotos, misturadas com as da chuva, tubos de canalização cobertas de lama são aspectos o que caracterizam aquele bairro histórico, criando um terreno fértil para a reprodução de diversos vírus e bactérias.

Berta Muacate, de 35 anos, residente no bairro de Chamanculo, conta que a sua filha, de apenas 13 anos, começou a queixar-se de febres na tarde do dia 16, depois de voltar da escola, completamente molhada.

“Nós vivemos no interior do bairro e ela teve de passar por muitos charcos para chegar à casa, para além de o nosso quintal estar alagado. Colocámos pedras para podermos circular”.

No Hospital Geral de Chamanculo, onde as (ela e a filha) encontrámos sentadas no banco à espera de serem atendidas pelo médico, a conversa entre os pacientes era a mesma. Todos reclamavam do precário sistema de saneamento, apontado como sendo um dos factores que contribuem para a eclosão da cólera e da malária naquela zona.

Na mesma situação esteve Preciosa Chicanequisso, residente do bairro Magoanine “C”, mãe de dois filhos, que passou por momentos de afl ição na última semana, tudo porque os seus dois filhos contraíram doenças devido às chuvas.

Ela conta que os meninos saíram na manhã da segunda-feira (16 de Janeiro) em direcção à escola. À hora do regresso, por volta das 11 horas, os petizes chegaram à casa totalmente molhados.

“Pelo que tudo indicava, eles teriam mergulhado num dos charcos que aparecem aqui no bairro sempre que chove. Ao fim do dia, ambos estavam trémulos, desconfi ei logo que tivessem contraído febre devido à exposição à chuva”.

Porque já era tarde, não dava para pensar em levá-los ao hospital, daí que ela tenha preferido ficar em casa com eles, apesar de a febre ter piorado durante a noite. “Pensei que se tratasse de uma situação passageira”.

Apesar disso, Preciosa tanto rogou para que o sol nascesse o mais rápido possível para poder levar os filhos à unidade sanitária mais próxima, neste caso o Posto de Saúde de Magoanine.

Pouco depois da meia-noite, a situação de um deles, o mais novo, começou a ganhar contornos alarmantes. “Aquilo tirou-me o sono”.

Na sequência da preocupação que extrapolava os limites da paciência de esperar pelo nascer do sol, Preciosa e o seu marido decidiram arranjar uma maneira de levar as crianças para o hospital, naquela madrugada.

“Eram quase duas horas quando nos preparámos para ir ao hospital, mas não temos um meio de transporte próprio e era antes de os ´chapas` começarem a circular”.

Sem alternativa, o casal Chicanequisso teve de pedir ajuda a um vizinho que os socorresse, o que foi prontamente aceite, tendo o destino sido o Hospital Geral de Mavalane.

“O nosso vizinho propôs que fôssemos ao Hospital José Macamo, mas não quisemos porque, primeiro, tem fama de prestar mau atendimento e, segundo, a minha esposa disse que os sintomas que os meninos apresentavam eram de cólera, e o único local para onde os doentes de cólera devem ser levados é o Hospital de Mavalane”, referiu.

Já no hospital foi-lhes dito que o filho mais velho padecia de malária e o mais novo, embora não apresentasse sintomas, de cólera. Este último teve de ficar de baixa porque, segundo o médico, já que a doença estava na fase inicial, eram necessários cuidados contínuos para evitar que o seu estado se agudizasse.

Depois do hospital, dirigimo-nos à casa desta família e as condições que encontrámos são de semear revolta no coração de qualquer ser humano que se compadece com o sofrimento alheio. A casa de banho ainda é de caniço e a latrina é feita apenas de pequenos paus que cruzam a cova feita para o efeito. Vivem em autêntico perigo à saúde e à integridade física.

Preciosa acredita que haja muitas pessoas que padecem destas enfermidades no seu bairro. “Vejo muitas crianças a queixarem-se de febres e outros sintomas semelhantes aos que os meus filhos apresentavam, mas os pais simplesmente ignoram. Não descarto a possibilidade de estas doenças eclodirem no bairro todo”.

No bairro Magoanine “C”, onde se presumia não haver focos para a multiplicação de mosquitos e do vibrião causador da cólera, começam a surgir charcos ao longo da rua Graça Machel. Esta questão está associada à existência de locais de concentração de água na rua. Exemplo disso é a zona da Escola Primária Completa Mártires de Mbuzine. “Sempre que chove as crianças vão mergulhar, apesar de todos os perigos a que estão expostas”, disse um dos moradores.

Outro bairro propenso a estes casos é o da Mafalala, onde o cenário se torna dantesco por causa da falta de valas de drenagens por onde as águas das chuvas possam escorrer. As poucas que existem estão entupidas porque as pessoas deitam lixo nelas, para além de as terem transformado em esgotos. É possível ver águas negras estagnadas e moscas a “passearem a sua classe” durante o dia.

José Francisco é residente daquele bairro há mais de 40 anos e diz que já não reconhece o local onde passou a sua juventude. “O bairro sofreu mudanças. As pessoas crescem, formam famílias e não mudam de bairro. A população de Mafalala duplicou após a independência. Já não há espaço para construir casas de banho, fossas, falta até espaço para passar”.

Em relação às doenças, José Francisco é de opinião de que o município devia construir mais valas de drenagem e limpar as existentes regularmente, pois só assim as pessoas poderão viver tranquilas. Entretanto, os seus apelos estendem-se também aos moradores que, na sua opinião, não contribuem para a melhoria das condições em que vivem.

“Tenho vizinhos que não têm dreno, quando tomam banho a água vai directamente para a vala, fazem a limpeza e não olham para onde deitam o lixo. Se fores a ver, elas (as valas) estão quase a transbordar, isto porque o canal está entupido. Não dormimos por causa dos mosquitos, somos obrigados a passar as refeições com as janelas fechadas devido ao cheiro nauseabundo que as águas residuais exalam”, queixam-se.

Como forma de fazer jus às suas palavras, José Francisco diz que há meses perdeu a neta de apenas 3 anos vítima de cólera. Conta que, numa manhã, a pequena Jéssica foi brincar à casa do vizinho que, curiosamente, se localiza ao lado de uma vala de drenagem. Quando regressou, a mãe tratou de lhe dar banho e pô-la a dormir. Por volta das 21 horas ela começou a vomitar.

Preocupados, os pais levaram-na ao banco de socorros do Hospital Geral de Mavalane mas a negligência e o mau comportamento de alguns funcionários não permitiram que eles fossem atendidos a tempo. Quando tal aconteceu, o médico transferiu-os para o Centro de Tratamento de Cólera, criado no recinto daquela unidade hospitalar.

“Quando chegámos ao centro já era tarde. O seu corpo já estava desidratado. Ligaram o soro mas ela perdeu a vida pouco tempo depois. Nós podemos ignorar aquela situação (de águas estagnadas) porque somos crescidos e o nosso organismo é forte mas o mesmo não se aplica às crianças”, lamenta.

Papel do MISAU e dos municípios

Até 2007, a malária ainda era um dos principais problemas de saúde, sendo responsável por cerca de 40% de todas as consultas externas. Até 60% de doentes internados nas enfermarias de pediatria eram admitidos como resultado de malária severa.

Para reverter esta tendência, o Ministério da Saúde adoptou medidas de carácter preventivo tais como a pulverização intradomiciliária, a distribuição de redes mosquiteiras tratadas com insecticidas, o diagnóstico rápido e tratamento adequado e a sensibilização das comunidades.

Só que estas medidas ainda estão longe de surtir os efeitos desejados, se tomarmos em conta o Relatório da Malária 2007, segundo o qual de 2004 a 2007 o número de casos tinha aumentado de 5.610.884 para 6.327.916, contrariamente ao de óbitos, que baixaram de 4.150 para 3.366 em todo o país.

No que diz respeito à cólera, o MISAU aposta na distribuição do cloro e no apelo à observação das regras de higiene para a redução e, quiçá, erradicação desta pandemia.

Porém, as campanhas não têm sido bem acolhidas pela população, principalmente a das zonas rurais, que, não raras vezes, não aceita que as suas residências sejam pulverizadas ou que os agentes da saúde purifiquem a águas dos poços.

A justificação é de que estes só contribuem para o aumento de casos. Há também a questão das redes mosquiteiras que têm sido desviadas do Sistema Nacional de Saúde para abastecer o mercado informal.

Por outro lado, parece que as estratégias do MISAU não foram traçadas em coordenação com os municípios, o que acaba de certo modo por influenciar o cumprimento das metas, isto é, os trabalhos não têm o impacto desejado.

Prova disso é a questão da limpeza das valas de drenagem e dos esgotos. Pelo menos nas cidades de Maputo e Matola, os canais não são limpos com frequência. Tal só é feito em momentos que a água já não passa ou quando estes se apresentam cheios de capim.

Por exemplo, quando do início das chuvas, os esgotos e valas de drenagem da capital do país estavam cheios de resíduos sólidos, areia e lixo, o que impossibilitava o curso normal das águas. A edilidade só começou a movimentar os seus trabalhadores quando as vias ficaram alagadas.

Se os conselhos municipais fizessem o seu trabalho regularmente e como deve ser, doenças como a cólera, a malária e outras associadas às chuvas já não constituiriam um problema de saúde pública e não se gastariam tantos fundos para a mitigação dos seus efeitos.

Munícipes não estão isentos

Seria injusto isentar os munícipes da culpa que têm neste problema. O lixo deitado nas valas não só impede a passagem da água, assim como constitui um ambiente favorável ao aparecimento de mosquitos, bactérias e outros micro-organismos transmissores de doenças.

O cheiro nauseabundo exalado pelas águas dos esgotos e latrinas que de uma forma deliberada estão ligados ao sistema de drenagem representam um perigo à saúde dos que vivem nas proximidades das valas (e não só).

Os que gostam de sofrer

Aquando das cheias de 2000, as famílias que viviam em zonas de risco foram transferidas para áreas seguras como forma de evitar que, sempre que chovesse, tivessem necessidade de que lhes fosse prestada assistência.

O que acontece é que alguns venderam os terrenos que lhes tinham sido atribuídos e regressaram às suas “origens”, e são as mesmas que aparecem agora a dizer que a chuva lhes tira literalmente o sono porque vivem em locais propensos a inundações.

É o caso de Manuel Cossa*, residente do bairro 25 de Junho, que diz ter recebido um terreno no bairro CMC em 2000, mas, pelo facto de ser distante, preferiu vendê-lo e retornar à sua antiga casa.

“Vi que a situação tinha voltado à normalidade, por isso vendi o espaço que me foi atribuído. Aquele bairro (CMC) não tinha energia, água canalizada, nem transporte. Tínhamos de começar do zero. Só que jamais imaginei que pudesse passar pela mesma situação. Sempre que chove perco tudo, é um círculo vicioso, a minha vida não anda”, diz.

Quando o entrevistámos, ele e a sua família estavam alojados no círculo do bairro de Inhagoia, à espera que a chuva abrandasse para poderem regressar à casa.

Malária

A malária é uma doença transmitida pela picada do mosquito fêmea do género Anopheles. A transmissão ocorre geralmente nas zonas rurais, mas pode acontecer em áreas urbanas, principalmente na periferia. Os mosquitos contaminam-se ao picar os portadores da doença, tornando-se o principal vector de transmissão desta para outras pessoas.

O risco maior de contracção da malária encontra-se no interior das casas, embora a transmissão também possa ocorrer ao ar livre. As larvas desenvolvem-se em águas paradas e a prevalência máxima dá-se durante o período chuvoso, altura em que as águas das chuvas se misturam com a das latrinas e dos poços.

Ela pode manifestar-se através de dores de cabeça, fadiga, febre, calafrios e náuseas. Em casos mais graves pode causar choque circulatório, desmaios, delírios ou convulsões. Pode também ocorrer a chamada malária cerebral, em que o doente fica em coma seguido de morte ou défice mental irreversível.

Embora não exista cura para esta doença, é possível evitá-la. O uso das redes mosquiteiras é eficaz na protecção durante o sono, período em que acontece a maior parte das infecções. A drenagem de pântanos e águas paradas é a medida mais eficaz.

Periodicamente, o MISAU tem levado a cabo campanhas de pulverização intradomiciliária nos bairros. Por isso, jamais negue que a sua residência seja pulverizada pois só assim estará a contribuir para a erradicação desta doença.

Cólera

A cólera é uma doença causada pelo vibrião colérico, uma bactéria que se multiplica rapidamente no intestino humano. A sua transmissão é feita através de ingestão de água ou alimentos contaminados ou por exposição a fezes de pessoas doentes.

Os sintomas mais comuns da cólera são a diarreia, as dores abdominais, as náuseas e os vómitos. Sempre que tiver estes sintomas, dirija-se à unidade sanitária mais próxima pois a cólera mata em 24 horas se não for tratada.

Como medida de prevenção, purifique a água com cloro antes de a consumir. Se não tiver cloro, opte por fervê-la, proteja os alimentos do contacto com as moscas e evite comer alimentos crus. Estas recomendações devem ser acompanhadas de uma boa higiene pessoal.

*Nome fictício

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