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A selecção até pode ganhar, mas o Brasil perdeu com o Mundial

A selecção até pode ganhar

Em 2007, a escolha do Brasil como sede do Campeonato do Mundo de 2014 gerou euforia nacional. O megaevento coroaria a ascensão económica desta potência emergente que foi mais vezes campeã mundial de futebol, com cinco conquistas em 18 edições. O então Presidente Lula da Silva sintetizou o desejo dos brasileiros, afirmando que “faremos uma Copa para argentino nenhum botar defeito”. Mas no país do futebol a Copa do Mundo pode ser um fiasco, pois têm-se registado protestos, greves, problemas com infra-estruturas e tiroteios em vez de festa. Depois da final, e mesmo que o escrete canarinho vença, os brasileiros não terão muito orgulho ou satisfação do torneio que organizaram, mas uma sensação de alívio!

Alívio também pelo fim dos gastos estratosféricos que rondam os 4,5 biliões de dólares, um valor nunca antes gasto com a organização de um Campeonato do Mundo de futebol, e quase tudo foi pago com dinheiro público. Dos 49 grandes projectos de construção que ficariam como importantes legados do torneio, 13 nem sequer saíram do papel ou foram drasticamente reduzidos. Entre eles, o comboio de alta velocidade ligando as cidades do Rio de Janeiro a São Paulo. Até a antiga casa do futebol brasileiro “teve a sua alma roubada”, escreveu a revista alemã “Spiegel”, citando as palavras de um professor americano que vive na cidade maravilhosa há vários anos. Segundo a Der Spiegel o estádio, construído em 1950, era um símbolo contra o racismo e a ditadura. “A arquibancada era redonda para que todos pudessem ter a mesma visão do estádio. Não havia divisões. Quando as equipas trocavam de lado, os torcedores davam a volta”, continua.

“E todos podiam entrar. Duzentas mil pessoas cabiam no Maracanã, era o maior estádio do mundo. Os bilhetes no anel inferior eram tão baratos que até os mendigos podiam comprá-los. Os franceses tinham a Torre Eiffel. Os americanos, a Estátua da Liberdade. Os brasileiros, o Maracanã.” Após diversas reformas ao longo dos anos, o estádio ficou transformado num centro comercial com relva no meio, e os bilhetes mais baratos custam cerca de 50 dólares. “Hoje o Maracanã tem a cara de qualquer estádio da FIFA. Podia estar em Londres, em Frankfurt ou em Yokohama”, lamenta a reportagem. “É uma arena para a televisão, e não para os brasileiros. É um assassinato cultural”.

A cadeia de erros do Brasil

As suspeitas em torno da capacidade brasileira de realizar um “Mundial” irretocável acompanham o país desde antes da vitória da sua candidatura a sede do torneio, em 2007. Ao longo do caminho, mesmo diante de sinais preocupantes, as autoridades brasileiras insistiam em garantir o sucesso absoluto da empreitada, prometendo aeroportos completamente remodelados, novíssimas opções de transporte público nas cidades-sede e obras viárias que transformariam a rotina das capitais – sem falar, é claro, nas modernas arenas erguidas para o torneio, que prometiam fazer o futebol brasileiro dar um enorme salto qualitativo.

Anunciava-se também uma importante evolução no sector de serviços, com expansão significativa da rede hoteleira e qualificação profissional para centenas de milhares de trabalhadores. Na recta final dos preparativos, torna-se absolutamente claro que todas as melhorias ficaram muito aquém do que se propagandeava. Há mais hotéis, mas a carência de leitos em algumas das sedes persiste.

Entre os funcionários do sector de serviços, as melhorias são incipientes – as iniciativas para incrementar a sua capacitação foram tímidas demais. O domínio de um segundo idioma, por exemplo, ainda é menos frequente do que os visitantes estrangeiros esperam. Muito mais grave, contudo, é o descompasso entre o discurso oficial e o que se vive nas sedes do “Mundial”.

O governo federal tem veiculado mais uma campanha de promoção dos benefícios do evento – a cinco meses das eleições, o filme divulga números bastante questionáveis ao elencar os ganhos do país com o “Mundial”. A propaganda do Governo de Dilma não mostra, porém, os projectos que ficaram pelo caminho. Várias acções de mobilidade urbana previstas na Matriz de Responsabilidades do Mundial foram canceladas, e só cinco das 45 intervenções mantidas no documento estavam prontas até o fim do primeiro trimestre. De acordo com a última estimativa feita pela revista VEJA, em Março, a conta do Campeonato do Mundo já estava nos 4,5 biliões de dólares.

Os atrasos na construção e reforma dos estádios engrossaram as críticas aos brasileiros no exterior – inclusive através de queixas públicas dos chefões da FIFA – e deixaram uma impressão má nos investidores que pensam em apostar no país. Também motivou uma péssima repercussão internacional a série de acidentes fatais nos canteiros de obras do “Mundial” – foram nove os operários mortos nos novos estádios. O medo do vandalismo infiltrado nos protestos contra os gastos com o evento estende a lista de preocupações dos estrangeiros com o país.

Alívio sem orgulho

Pode parecer difícil identificar onde exactamente as coisas saíram dos trilhos. Na raiz de quase todos os apuros do Brasil com o “Mundial”, contudo, há sempre um mesmo elemento: o peso dos interesses políticos. A própria realização do evento no país, ideia de Ricardo Teixeira prontamente comprada pelo ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi uma tentativa de projectar um Brasil mais desenvolvido graças às acções do Governo.

Falava-se, na ocasião, num “Mundial” com todos os estádios suportados pela iniciativa privada, mas o desejo de entrar na festa levou governos de nada menos de nove Estados a assumir as despesas das novas arenas. A FIFA exigia apenas oito sedes, o que tornaria o “Mundial” muito mais barato. O Brasil insistiu em doze, para contemplar o maior número possível de Estados. Da mesma forma, os cartolas da entidade propunham dividir o país em quatro regiões para facilitar os deslocamentos de turistas, delegações, dirigentes e jornalistas – o que reduziria o risco de problemas nos aeroportos, por exemplo. Para levar a selecção a mais de uma região e evitar ciúmes, os brasileiros rejeitaram a sugestão.

 

No Brasil, o “Mundial” pela culatra?

Em vez de festas de boas-vindas ao torneio que acontecerá de 12 deste mês a 13 de Julho, crescem os protestos que paralisam metrópoles, greves por aumento salarial, denúncias de corrupção e de direitos violados nas obras para o “Mundial”. O país do futebol e da alegria nega o seu estereótipo. No Rio de Janeiro, há pouquíssimas ruas enfeitadas nas cores verde e amarela, do seleccionado nacional, contrastam com as maciças mobilizações de outros “Mundiais”. O entusiasmo baixou justamente quando o Brasil é anfitrião do maior acontecimento desportivo do mundo. A indignação dos brasileiros irrompeu em Junho de 2013, com surpreendentes e violentos protestos contra os maus serviços de saúde e educação, o caos urbano, a corrupção e os gastos com o “Mundial”.

Temendo novos actos de rua, o Governo ordenou o envio de 157 mil militares e polícias para cuidarem da segurança dos jogos que acontecerão em 12 cidades neste país de dimensões continentais e quase 200 milhões de habitantes. Mas a má vontade em relação ao futebol “é uma tendência que vem dos três últimas Mundiais?”, afirmou Paulo Santos, cabeleireiro que há 40 anos trabalha num bairro tradicional do Rio de Janeiro, que ouve a opinião de centenas de clientes, numa pesquisa informal permanente. O “Mundial” de futebol em casa deveria reavivar a paixão dos adeptos.

“Fazem a festa com dinheiro alheio, o nosso”, resumiu Santos, corroborando a percepção generalizada de corrupção, desperdício de recursos públicos e ambição da FIFA. As pesquisas também captaram a desmobilização. Em Fevereiro, apenas 52% dos entrevistados pelo Instituto Datafolha eram favoráveis à organização da Copa, contra 79% em 2008.

Uma pesquisa mais recente, limitada à cidade de São Paulo, aponta 45% dos entrevistados a favor e 43% contra. O restante deles disse ser indiferente. O pior é que uma esmagadora maioria, 76%, considerou o país não preparado para receber a maratona de 64 jogos entre 32 selecções nacionais. Muitos dos projectos previstos, especialmente de mobilidade urbana, não foram cumpridos ou ficaram incompletos. A construção de alguns dos 12 estádios ou a sua reforma foi concluída à última hora, sem alguns acabamentos e sem testes. Metade não tem conexão sem fio à Internet. Atrasar obras é uma tradição no país.

Isso também aconteceu no primeiro “Mundial” disputado no Brasil, em 1950, quando o principal estádio, o Maracanã, foi inaugurado dias antes, entre a lama e o entulho da obra. Era o maior estádio do mundo. Projectado para 155.250 espectadores, estima-se que recebeu mais de 200 mil na partida final. Agora, reformado e luxuoso, pode receber apenas 74.689 pessoas. A megalomania actual é diferente. O Brasil está enredado desde a década passada na construção de numerosos portos, hidroeléctricas, ferrovias e estradas, numa tentativa de superar o défice de infra-estrutura acumulado nas duas décadas perdidas precedentes. A maioria dos grandes projectos conta com anos de atraso.

A principal ferrovia, um eixo norte-sul de 4.155 quilómetros, está em construção há 27 anos, com apenas um terço dos trilhos instalados. A esse atraso somaram-se as obras para o “Mundial” em 12 cidades e para os Jogos Olímpicos de 2016 no Rio de Janeiro, que não admitem adiamentos. A pressão do prazo pode ser uma causa dos acidentes que provocaram a morte de nove operários nos estádios, sete deles empregados de empresas subcontratadas. A multiplicação e concentração de trabalhadores em grandes obras espalhadas pelo país empoderou os operários da construção.

Após numerosas greves, obtiveram aumentos salariais e benefícios como visitas familiares mais frequentes para os que estão longe de casa. Porém, as condições de segurança continuam precárias e os acidentes repetem-se, quase sempre por falta de medidas de protecção colectiva, com as ambientais e andaimes seguros, apontou Vitor Filgueiras, economista que pesquisa o assunto para a sua tese de doutoramento. A terceirização, “uma forma de transferir riscos”, agrava o quadro de trabalho inseguro e inclusive análogo ao da escravidão, acrescentou.

O “Mundial” foi foco comum de todos os protestos e greves recentes, de estudantes, professores e motoristas de autocarros. Mas o apoio popular às marchas e batalhas nas ruas diminuiu notavelmente, segundo as pesquisas, para sorte do Governo de Dilma Rousseff. Há um ano, 54% dos entrevistados pelo Instituto Vox Populi aprovavam os protestos, agora são apenas 18%.

Isso diminui o risco de actos maciços, mas grupos de dezenas de activistas paralisam actualmente cidades, numa espécie de guerrilha favorecida pelo congestionamento urbano permanente. Além disso, as eleições de Outubro politizam o futebol. Para a opinião pública, o “Mundial” e o Governo estão vinculados. Um fracasso brasileiro, nos relvados ou na organização, fabricaria votos opositores.

A Presidente continua como favorita à reeleição, mas o futebol ganhou peso, somando-se a outras iniciativas governamentais que também pareciam boas quando foram adoptadas, e agora já não. Por exemplo, a compra da refinaria de Pasadena, nos Estados Unidos, impulsionaria a expansão internacional da Petrobras e permitir-lhe-ia refinar o seu petróleo pesado. Mas a aquisição custou o triplo do contrato inicial de 360 milhões de dólares e perdeu importância porque o Brasil aumentou a sua produção de petróleo leve.

O caso, sob investigação de órgãos de controlo, amplificou outros escândalos da Petrobras. Medidas para baratear a electricidade em 2012 e beneficiar a indústria e a população, também se revelaram um desastre, pois estimularam o consumo quando uma prolongada seca reduziu a geração hidroeléctrica, desencadeando uma crise energética, com ameaça de apagões. O descontentamento, também alimentado pela inflação elevada e baixo dinamismo económico, contagiou o “Mundial”, já afectado por factores próprios. As exigências da FIFA criaram “um estado de excepção”, escreveu Lygia Cavalcanti, juíza do Trabalho, na revista da Associação Juízes para a Democracia.

O Brasil aceitou “a suspensão temporária” do seu ordenamento jurídico para receber o “Mundial”, ressaltou. Está proibido o comércio num raio de dois quilómetros em volta dos estádios, os moradores foram deslocados das suas casas e recorre-se ao trabalho de 18 mil voluntários, quando a lei só admite o voluntariado a instituições culturais, cívicas ou assistenciais, sem fins lucrativos. Além disso, a FIFA conseguiu registar excepcionalmente como sendo marcas suas exclusivas, durante este ano, cerca de 200 palavras, expressões e símbolos de uso comum.

Muitos nomes com o número deste ano, como “Brasil 2014” ou “Natal 2014”, só podem ser usados comercialmente pagando-se direitos à FIFA. A excessiva mercantilização levou a FIFA a cobrar 12.500 dólares à Associação Recreativa e Cultural do Alzirão, que desde 1978 promove uma festa de rua no Rio de Janeiro, exibindo numa gigante tela as partidas da selecção brasileira no “Mundial”.

A Alzirão deveria pagar pelos direitos de imagem, já que o seu evento se converteu num espectáculo com mais de 30 mil pessoas por dia. Um pedido do prefeito Eduardo Paes convenceu a FIFA a eximir a Associação, informou Ricardo Ferreira, presidente da entidade. A mobilização para o “Mundial” “esteve fraca, mas começa a aquecer”, afirmou. Uma vitória do Brasil na abertura da Copa, na Arena Corinthians, em São Paulo, poderá incentivar a população e restabelecer a alegria do futebol, ressaltou.

 

“Mundiais” que foram o orgulho dos anfitriões

2010: o ronco das vuvuzelas

O maior evento desportivo já realizado num país do continente africano levantou a auto-estima dos sul-africanos. Apesar dos temores sobre a violência e os atrasos nas obras, o “Mundial” decorreu bem. Nas arquibancadas, nada de apartheid: adeptos brancos e negros ficaram lado a lado e empurraram a sua selecção, menos de duas décadas depois do fim do regime de segregação racial.

2006: bandeiras ao vento

As manifestações patrióticas eram tímidas na Alemanha desde o fim da II Guerra Mundial. O profundo constrangimento provocado pelas lembranças dos crimes brutais do regime nazista tornava raras as ocasiões em que os alemães exibiam as suas bandeiras em eventos internacionais. No “Mundial” de 2006, a população vestiu, enfim, as cores do pavilhão nacional para apoiar a sua selecção dentro de casa.

2002: o mar vermelho

Japão e Coreia do Sul dividiram o privilégio de sediar o primeiro “Mundial” em território asiático. Os vizinhos partilharam também uma ocasião ímpar: uma onda de festejos nas ruas por causa da realização do evento. O fenómeno foi especialmente poderoso entre os sul-coreanos. O envolvimento da população no evento foi tão grande que contagiou a selecção da casa, que ficou em quarto lugar.

1998: allez, les bleus

Os adeptos franceses sonhavam com a hipótese de entrarem no restrito clube dos campeões mundiais. A melhor oportunidade da história da selecção azul veio com o Campeonato do Mundo disputado em casa. O público local fez a sua parte, empurrando a equipa e criando uma atmosfera favorável à selecção de Zidane. A equipa já saía em vantagem na hora do hino ? a ‘Marselhesa’ era sempre cantada em uníssono.

1990: no país da bota

O calcio italiano queria superar o Brasil e transformar o país-sede de 1990 no primeiro tetracampeão mundial. O título não veio, mas a população italiana fez uma enorme festa para celebrar os seus tesouros nacionais ? além do futebol, os patrimónios históricos e culturais, a gastronomia e as belas paisagens da Velha Bota. À selecção italiana restou um terceiro lugar no “Mundial”, atrás da Alemanha e da Argentina.

1978: nos tempos das trevas

A Argentina vivia uma cruel ditadura militar quando recebeu o Campeonato do Mundo de futebol pela primeira vez. Para os generais, era uma oportunidade de mostrar uma imagem positiva do país e reduzir as tensões entre a população. A pressão pela conquista do primeiro título foi enorme. Não faltaram rumores sobre lances de bastidores que teriam ajudado os argentinos. A selecção da casa ergueu o título em Buenos Aires.

1974: apagando Munique

Dois anos antes, a Alemanha tinha recebido a Olimpíada. O país estava ávido de deixar os traumas da II Guerra para trás e mostrar uma nação reformada ao mundo. Mas o terror do Setembro Negro em Munique manchou de sangue os Jogos de 1972. Em 1974, a festa acabou por ser completa. O torneio foi um sucesso, e a selecção da casa ainda derrotou a Laranja Mecânica holandesa na grande final.

 

Adaptado de Revista Der Spiegel/ Revista VEJA/ IPS

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