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Pandza: A portagem

Reclamando reforma, a ignição não respondeu à primeira. Depois de várias tentati vas o motor sacudiu o corpo do veículo e espantou o orvalho adormecido na pele metálica da carroçaria.

Com a tremedeira, as gotas de cacimba escorreram pela vidraça. Ao ronco espreguiçado do motor acrescentou-se o ruído engonhado da caixa de velocidade. Era cedo, muito cedo, e o carro moveu-se, ainda que a contragosto, consciente das suas obrigações.

Quando o sol despertou e espantou a bruma, já o veículo se fazia à estrada, em lenti dão, mais cansado que velho, mais ressacado que preguiçoso. A suspensão já não ti nha idade para a violência do esburacado da via e as solas gastas dos pneus carecas não conseguindo esquivar, preferiam andar pelos buracos, evitando o que restava do asfalto.

Estava com fome, ou sede, ou ambas as coisas. O estômago estava na reserva, parou na primeira bomba de gasolina para o pequenoalmoço. Nos bolsos dos porta-luvas as moedas apareciam a custo, deu só para engolir pouquíssimos litros, o manómetro ultrapassou milimetricamente a reserva, e a luz amarela do painel apagou-se.

Com o motor bocejando, o volante mudou de direcção e o veículo ganhou outro alento quando entrou para o chão atapetado da estrada recém-construída e muito bem cuidada, que justi ficava a portagem. Desviou devagar para não magoar os cardãs que já se queixavam. Fez um compasso de espera para engatar a mudança.

As mudanças hesitavam demais, roncando a carti lagem da caixa de velocidades lá engatou. Um fumo preto, gases intesti nais dos óleos do motor, escureceu a traseira denunciando o esforço da máquina, a fuselagem estremeceu, e o veículo embalou, juntando- se ao fluxo de carros em direção à portagem, a porta da cidade.

A estrada parecia uma fêmea deitada para se dar, e ali na portagem, onde se alarga e forma um delta, pareciam duas pernas que se afastavam e se afunilavam num buraco por onde os veículos tinham de passar. Os veículos, roncando os seus motores, pareciam espermatozóides congestionados, ansiosos por uma fecundação.

Pagou e engravidou a portagem, seguindo o desti no. Percorreu as artérias esburacadas da cidade, dobrou esquinas, aguentou paciente os semáforos, aproveitou o embalo das descidas para poupar gasolina, e na falta de lugar decente deixou-se estacionar no passeio, o mais confortável possível, pois iria permanecer ali o dia todo. Adormeceu, um sono profundo, de quem cumpre o expediente contando os minutos para a reforma.

Quando o sol se fartou de chamuscar tudo e todos e começou a retirar-se, estava na hora. A ignição não respondeu à primeira, nem à segunda, nem à terceira. Só acordou quando foi tchovado, aproveitando o embalo da descida. Contornou buracos e dobrou esquinas. Tinha sede, a luz amarela já acendia no painel mas agora era difícil poupar gasolina, os semáforos pareciam mais longos e o percurso era a subir.

A passo de reforma virou as solas carecas dos pneus e entrou para aquela estrada sem buracos, juntando-se ao fluxo de viaturas que percorriam o senti do de fi nal de expediente. Estava próximo da portagem quando senti u a garganta dos carburadores seca. Soluços que pareciam vir da alma, sacudiram-no violentamente. Parou perturbando o trânsito! Era a gasolina.

Já era noite quando conseguiu dar de beber combustí vel ao estômago sem comprometer o dinheiro da portagem. A ignição respondeu tossindo alguma sujidade no carburador. Acendeu os faróis tí bios, desligou os piscas de emergência e avançou em direcção às pernas abertas da portagem.

A portagem, que de manhã era uma fêmea deitada para o coito, agora era uma mulher grávida e paria veículos gêmeos do útero da cidade. Quando o veículo avançou, pronto para se deixar parir, e se esquecia de pagar, comovido com o esforço maternal da portagem para escoar o trânsito dos seus nados, uma cancela baixou violentamente e acendeu “stop! Pague!”.

O veículo estranhou, pagou e seguiu o rumo, inquieto: como poderia ser parto e ser pago? Ainda se entendia que aquela mãe fosse do ti po que cobra para ser fecundada, como faz todas as manhãs. É uma profi ssional… Mas uma mãe montando cancelas à saída do útero e cobrando portagem aos próprios fi lhos?!!! É monstruoso!

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