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A ntyiso wa wansatititi – Eva quer dormir

Quando Eva chegou ao aeroporto da Portela, não a deixaram passar nos passaportes. Faltava-lhe o visto de entrada, mas Eva não sabia o que isso era, um visto é uma coisa que não faz sentido para uma rapariga que nasceu entre galinhas e patos no meio da neve, numa terra quase sempre branca e cinzenta, onde a noite cai antes do meio da tarde.

Eva sempre foi muito alta e bonita, mesmo quando ainda era uma criança, muito mais bela que as duas irmãs mais velhas, Olga e Katienska, que a criaram como filha depois de a mãe ter morrido com meningite quando Eva tinha apenas três anos. A pequena escapou por milagre, porque era bafejada pela sorte, disse o médico da aldeia. As irmãs não eram sequer bonitas, mas Olga tinha uma voz maravilhosa e cantava no coro da Igreja e Katiesnka fugiu com um viúvo da aldeia ao lado que tinha um negócio de pele, foi viver para Moscovo e nunca mais souberam dela.

Queria ser bailarina e sonhava com as luzes do teatro na grande cidade, mas o pai de Eva, cansado do campo, do frio e da falta de dinheiro para criar as filhas, passava o tempo a dizer à mais nova que um dia a ia vender a um homem muito rico e Eva cresceu aterrorizada com a ideia. Com medo que fosse verdade, escortinhava o cabelo, entortava os olhos e punha faixas à volta do peito que não teimava em crescer. Escapou por um triz ao destino, quando fugiu para o Ocidente com uma amiga e entrou numa rede de streappers.

Eva viajou de comboio, de camioneta, de barco, dormiu em hotéis de beira de estrada e, por fim, foi metida num avião para um destino de que nunca tinha ouvido falar: Lisboa. Disseram-lhe que era uma cidade branca, onde o sol nunca se escondia e onde podia ganhar muito dinheiro. Mas não lhe disseram que não podia entrar sem visto e como Eva não fazia ideia do que isso era, namorou a cidade da janela do avião com a alegria de uma menina a quem dão uma boneca nova.

Por fim, depois de muitas horas de espera, um homem de bigode e casaco cor de mel, veio buscá-la e levou-a para um apartamento onde viviam mais quatro raparigas, três do leste como ela, e uma venezuelana. E Eva começou a ter aulas de dança para aprender a despir-se com graça e a enfeitiçar os homens. As outras emprestaram- lhe paciência e lingerie e uma semana depois Eva começou a trabalhar.

 Entrava às dez da noite e saía às cinco da manhã. Todas as noites pintava-se e penteava como se fosse para um baile. Como não sabia pintar-se, as outras brincavam com a cara dela como se fosse uma máscara, mas Eva não se importava. Sabia que precisava da ajuda delas para se tornar igual a elas. E sabia que se dançasse bem e sorrisse muito, se abanasse as ancas e passasse pela pele suave do corpo as mãos bem espalmadas, apertando a sua própria carne, podia ganhar muito dinheiro.

Com o tempo, Eva foi ficando cansada. Tinha dinheiro, mas não tinha tempo. Tinha amigas, mas não podia ter namorado. Tinha uma vida a fingir e sabia que não podia ter uma vida a sério. Mas o pior, o pior eram os sonos trocados, o cansaço acumulado, uma sensação de dormência permanente que lhe toldava os sentido e a vontade de viver. Deixou de pensar no ballet de Boslshoi, já era bailarina, deixou de pensar que podia ter outra vida, deixou que a memória apagasse a voz de Olga e o sorriso de Katiesnka e esqueceu-se de quem era.

Eva quer dormir, mas a vida não a deixa viver, não a deixa ser, não a deixa estar. A vida é sempre outra coisa, mesmo atrás de uma barra que serve para pendurar as pernas e o coração de alguém que já não existe.

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