Eis-me aqui
de morte em morte
caminhando para a luz
Já vos tinha dito que eu não sou daqui, e nunca quisestes me ouvir. E eis-me aqui, lutando todos os dias contra a morte que se instalou em mim desde o dia em que saí do ventre da minha mãe, que mal sabia estar a dar à luz uma criança que cresceria inconsistente.
Um bebé que seria um homem amanhã, vagando todos os dias à procura de algo abstracto. Inexistente. E esse homem sou eu, vivendo sem nada nas mãos.
Um andarilho celestial, que nunca se preocupou com o lugar da sua morte, porque eu sempre disse: que se lixe a morte! Mas o que me regozija no meio deste mar revolto é que quero ser um monstro, e, como sabeis, para lutardes contra a morte, tendes que ser um monstro.
Na verdade nunca consegui a paz dentro de mim, e já vivi mais do que meio século. Olho para trás e só vejo derrotas em todas as terras que cultivei. E Deus fez-me para vencer, por isso estou aqui, de morte em morte, caminhando para a luz.
Estou feliz por voltar ao vosso convívio, agora a partir da minha terra, da cidade mais sossegada do mundo, Inhambane. É aqui onde agora moro, e me sinto bem. Quero esquecer-me de todas as derrotas da minha vida, não me quero arrepender de nada, mas sim, quero inventar um novo fim. Quero voltar a fixar esta bóia que sou, há muito abandonada no mar, sem iluminação.
E acontece que hoje não tenho nada para vos contar. Tremem-me as mãos e o coração. Perdi o olfacto. Não sinto o cheiro das palavras.
Elas hoje viram-se contra mim, elas riem-se do tremendo esforço que faço para que elas fluam. Tentei escrever sobre a minha última estada em Kambulatsitsi, na província de Tete, e nas teclas do meu computador as letras aparecem ensanguentadas.
Quis escrever uma crónica, cuja estória gravitaria à volta daquela criança que nasceu na cidade da Beira sem os braços, e, quando estava ainda na primeira linha, comecei a chorar de comoção e não consegui avançar. Quis falar-vos do encontro que tive com o próprio diabo na semana passada, também nada!
Ora essa! Mas eu conheço as causas deste bloqueamento todo. Estou num dia em que comemoro o meu regresso. Celebro, uma vez mais, a minha vitória sobre a morte. E, quando é assim, não consigo fazer nada. Nem escrever.
Mas não tem problema. Na próxima sexta-feira eu aqui estarei, festejando convosco a vida, que é bela!
Aquele abraço!