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Kerygma: A identidade que não tenho – por Cremildo Bahule

Amigos leitores deste espaço (de um nome alienígena), hoje vim partilhar uma parte da vida de um amigo meu, de nome Kelesa Spyros. Ele confiou-me essa tarefa de explanar sobre a sua vida porque eu sou o seu melhor amigo. Uma vez que o espaço é exíguo, terei de condensar a vida do meu amigo em sete parágrafos.

Kelesa Spyros nasceu no bairro do Inhagóia «A», na década de oitenta. De uma família simples, aprendeu que a vida se conquista com trabalho e dedicação. Fez dessa lição um remo para sobreviver nessa vida que, para uns, é uma bênção dourada e, para outros, é uma pedra de Sísifo nos ombros. Porque a pobreza absoluta nasceu com Spyros, a sua família viu-se obrigada a apresentá-lo – com dois anos de idade – para adopção numa casa de caridade sob os cuidados de padres jesuítas.

Sendo Spyros um talento – ainda com quatro anos de idade – na e com a madeira contagiava todo o ser humano que acompanhava o seu trabalho: desde os brinquedos até um simples banquinho. Porque em Spyros se via um artista, a congregação dos jesuítas decidiu dar-lhe uma oportunidade. Assim sendo, mandaram-no para Itália a fim de fazer os seus estudos.

Kelesa Spyros teve de ser naturalizado italiano para poder beneficiar dos direitos dos cidadãos daquele país ocidental. Nessa senda, fez o ensino primário e o secundário na capital italiana e, por causa do seu talento, teve a oportunidade de concluir o ensino universitário em Veneza, na Universidade de Salento. No seu percurso de formação nunca se desligou da madeira.

Na sua constituição profissional experimentava (como empreiteiro) diversas formas de usar a madeira para construir vários instrumentos para uso humano. Terminado o seu curso abriu uma empresa junto de Kisha (a sua companheira com quem tem três filhas) uma empresa de fabrico de instrumentos musicais. Por causa do seu talento, em cinco anos, a sua organização tornou-se uma das referências no fabrico de instrumentos de corda para bandas sinfónicas e conservatórios de música.

Por causa dos belos e eficientes instrumentos que constrói – que são básicos para tocar madrigais e óperas de forma dissonante ou monódica – a sua popularidade espalhou-se pela região europeia e americana, onde tem sucursais de construção de instrumentos. Actualmente Spyros é um expert na construção de instrumentos de música no mundo e tem uma estrela na calçada de Hollywood.

Para agradecer o seu berço de pobreza absoluta, Kelesa Spyros decidiu levar os pais e os irmãos para irem morar com ele em Veneza. Eu, Cremildo Bahule, sempre tive contacto com ele por sermos amigos e por «razões que a razão desconhece» como diz Blaise Pascal. Sendo eu a ponte, viajei com a família para Veneza e o encontro foi emocionante principalmente quando a mamana Clara viu as netas e a sogra, mesmo sendo elas de raça branca.

Depois de cumprir o meu papel tinha de regressar a Moçambique. No aeroporto, quando me despedia do meu amigo ele disse: «estou num dilema meu irmão». Eu entontecido perguntei: «porquê». E ele quase a chorar disse: «qual é a minha real identidade: sou moçambicano ou italiano». Eu não respondi. Entrei no avião e fui reflectindo sobre o assunto: as pessoas podem conquistar tudo e confundir-se com o mundo por causa das suas glórias, mas enquanto não souberem quem elas realmente são, ou fingirem ter uma identidade, nunca estarão em paz consigo mesmas.

Chegado a Moçambique a primeira coisa que fiz foi telefonar-lhe e perguntar-lhe se podia contar a sua história aos meus amigos como uma forma de buscar alguma solução. Ele aceitou com um «sim» muito, mas muito grande. Por isso partilho essa história convosco, hoje, do meu amigo Kelesa Spyros.

Contudo, ao partilhar essa história já devem imaginar o meu alcance: afinal o que é ser moçambicano? O que é ter uma nacionalidade? O que é naturalidade? De verdade, de verdade, na verdade verdadeira o que é uma identidade? É um bilhete de identidade, um passaporte diplomático ou é chorar num solo e ter o meu umbigo enterrado no Inhagóia «A», Mafalala, Pebane ou Dondo?

Já devo imaginar que chamarão o meu amigo racista e moçambicano não genuíno porque vive em Veneza, representa Veneza e não faz nada de e por Moçambique e pelo bairro que lhe viu nascer. Kelesa Spyros é brejeiro, patife porque patenteia a identidade veneziana e não a moçambicana. De certeza que, em relação a Spyros, essa situações já se atenuou. No entanto, ela manifesta-se ao mais alto nível com outras pessoas que tiveram o seu choro no solo moçambicano e, para abandonar a sua condição de pobreza absoluta à procura da riqueza absoluta, tiveram de ir para Europa ou qualquer região do mundo onde emana ouro e oportunidades para os talentos.

Enfim, eis a falácia da identidade. Para mim, a identidade oscila entre três coisas – aceitação, oportunidade e auto-realização. Obviamente que há condicionantes para que este tripé seja fecundo, sob pena de ser um nado-morto. Acredito que o não individual pode fazer-me fugir de ser escravo, não me valendo mais que me chamem homem livre. Todo o ser humano tem o direito de sorrir e alegrar os outros e sempre buscará esse caminho para se consolar dos seus fantasmas e do passado que sempre estará com ele.

O dilema do meu amigo Kelesa Spyros não é o mesmo que o de José Rodrigues dos Santos? Jimmy Dlululu? Maria João? Bruno de Carvalho? Carlos Queiroz? Ou não estarão outros moçambicanos a querer seguir o mesmo exemplo, pois para nós identificarmos os que vivem esses dilemas oscilamos entre moralismos mal elaborados (e por vezes racistas) e leis que engravidam heróis (em nome de um nacionalismo decomposto).

P.S.: qualquer semelhança com a realidade é uma pura coincidência.

Cremildo Bahule

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