Era 1 de Junho, aquele dia que, para interesse dos adultos se convencionou chamar “Dia das Crianças”, como se elas precisassem de uma data, como se todos os dias não devessem ser. O burburinho chilreado da criançada era intenso. O poeta da Mafalala desceu a rua sem acordar a poeira.
Com a cabeça nas nuvens, os pés pisavam sem desrespeitar o chão. Seduzido pelos meus amendoins, perguntou-me, sem tirar os olhos da tigela:
– “Quanto custa, quanto custa afinal uma quinhenta de amendoins torrados do negrinho de faces tatuadas de ranho seco?”
Não percebi. Esbugalhei nos olhos toda a inocência da idade e, fungando ranho, recorri:
– Hein?!
– Não é “hein?!”, é “diga?” que se diz. – corrigiu-me em tom didácti – co, enquanto se dobrava para alcançar os meus amendoins.
Ali próximo os da minha idade rebolavam futebóis com uma bola de cadju (aquelas da loja, de material convencional), alheios à data comemorati va que lhes fora incuti da. Os ânimos refrearam quando se interrompeu a parti da porque um deles, calçado e sem remendo nos calções, o dono da bola, se ia embora. Recolheu a bola, passou por mim, comprou alguns amendoins e correu para casa.
O poeta percebeu o meu olhar distante, de quem ainda não entendia o mundo senão pelos sonhos que me cabiam na cabeça. Com lenti – dão característi ca (poeta é um animal lento porque reserva todas as energias para sonhar) sentou-se ao meu lado, sobre a pedra enorme que eu fazia de banco e banca. Peti scando os meus amendoins, disse:
– Sabes, vou-te contar uma estória, chama-se “Fábula” – falava lentamente, com os beiços em riste, engolindo a voz, parecia ter amendoins torrados nas cordas vocais – “Menino gordo comprou um balão, e assoprou, assoprou com força o balão amarelo. Menino gordo assoprou, assoprou, assoprou, o balão inchou, inchou e rebentou. Meninos magros apanharam os restos e fizeram balõezinhos”.
Não alcancei, não reagi. A meninada do bairro, há muito que havia substi tuído a bola de cadju por um xingufu (aquelas de trapo). O poeta, percebendo o meu desinteresse calou-se, levantou-se, ainda masti gando os meus amendoins, levou a mão ao bolso e tirou de lá uma nota pequena, mas gigante para a minha condição:
– Eu compro todo o teu amendoim. Vai jogar.
Não me lembro de ter agradecido, tal era a emergência. Disparei dali a correr, com os intermitentes piscas dos meus calções acenando e fui juntar-me aos da minha idade, acabando o “Dia das Crianças” aos futebóis.
No dia seguinte, na aula de Português, a professora indicou no livro de leitura a página que deveríamos ler. O texto era aquele, “A fábula”. Disse-nos que aquilo era poesia, ti nha de ser lido com vida. Olhou para mim e disse “lê”. Eu fiz aquela fala lenta, com os beiços em riste, a voz engolida com amendoins torrados nas cordas vocais, e li: “Fábula. Menino gordo comprou um balão, e …”.
A professora elogiou a leitura. Na aula fiquei a saber que fábula é uma narrati va cujos personagens são animais com característi cas humanas. Perguntei à professora se também se chama fábula quando são humanos com características animais, como no texto. Ela explicou-me que no texto os humanos eram os meninos magros, feitos animais, mas havia animais, os gordos que se fingiam pessoas.
Comecei a perceber e a gostar do texto. Foi a primeira vez que me senti dentro de um poema. Eu era um daqueles meninos magros, e ti nha amigos magros. Também tinha amigos gordos, que compravam balões, amarelos ou não e assopravam com força.
O balão inchava e rebentava. Nós, os meninos magros, apanhávamos os restos como se apanhássemos retalhos da nossa infância e reconstruíamos a nossa alegria, fazíamos balõezinhos, que não voavam mas chiavam agradavelmente no atrito com as mãos e os dentes.
Hoje, crescidos, já não somos meninos. Meninos magros crescidos já não apanhamos restos para fazer balõezinhos. Já não há restos porque os meninos gordos crescidos já não assopram balõezinhos. Eles compram os balões, mandam os meninos magros crescidos encherem e subvertem a fábula do poeta.
Os meninos magros crescidos assopram com força e o balão incha, mas não rebenta. Os meninos gordos crescidos levam os balões cheios, sugam o ar. Sugam e as barrigas incham. Incham tanto que um dia podem rebentar…