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A dança, o outro lado da moçambicanidade

A dança

Em cena, uma sequência de movimentos expansivos, gestos pequenos e subtis, quedas agressivas e imediatas ocupam o palco em combinações de solos, duos, trios e/ou quartetos. As crianças, os jovens e os velhos dançam. Os fãs gritam, aplaudem, emocionam-se acompanhando com ternura os compassos. É a dança. O outro lado da moçambicanidade.

Se, por um lado, no alinhamento das artes, a dança é considerada a segunda manifestação artística dentre as sete, por outro, nas comunidades mais longínquas, é vista como a primeira modalidade pois, como afirma Luís Chiledena, “ela demonstra a identidade de um povo, a partir dos seus hábitos e costumes, a sua história e os seus sonhos”. A dança, esse laço que une gerações, satisfaz diversas demandas de um povo.

Nas vésperas do recém-terminado VIII Festival Nacional da Cultura, vários grupos oriundos das zonas rurais Moçambique mostraram o seu potencial a esta manifestação artístico-cultural. Nesse sentido, o bailado, uma fonte de inspiração e união entre as nações, constituiu o cardápio principal do evento. Um misto de chutos, berros, cambalhotas e de gingares – que se manifestam a partir da dança – são o motivo para a congregação de pessoas num lugar determinado. Os bailarinos revestem-se de peças apropriadas e apresentam-se como animais. Às vezes são serpentes, materializando actos delicados e astuciosos ao mesmo tempo que nos dão a ideia da furiosidade de leões e de patifes.

Os ‘milagres’ de Tafala

Entusiasmar, assustar, enamorar, mexer e dançar são os principais atributos manifestados pelos bailarinos do Grupo de Dança Tafala da província de Tete. Composto por jovens e adultos, no seu baile, esta colectividade simula as violações sexuais e as agressões físicas. A dança chama-se Katekwe e confunde-se com uma autêntica terapia.

O representante do Grupo de Dança Tafala, Luís Chiledena, pratica Katekwe desde a sua adolescência. Embora seja deficiente físico de nascença, ele é uma espécie de autoridade artístico-cultural: “Danço Katekwe há bastante tempo. Quando me vêem, pela primeira vez, a entrar no palco, as pessoas subestimam-me. Os que me conhecem já sabem. Não sou homem de decepções. Faço o que todos conseguem fazer com perfeição”.

De acordo com Chiledena, a dança é praticada nas zonas mais afastadas das cidades, incluindo em rituais fúnebres: “Tal como fazem alguns crentes que, aquando do desaparecimento físico de uma pessoa próxima, vão à casa, rezam e cantam, nós dançámos para consolar a família e despedirmo-nos do morto”.

Nesse contexto, “as crianças não podem fazer parte dos agrupamentos. Não há exclusão de sexo e nem de idade, mas é preciso que se tenha em conta a vulnerabilidade dos fedelhos. O bailado pratica-se mais nos cemitérios e é inconcebível que os petizes frequentem esses lugares”. Para além de celebrarem a morte, segundo Luís, os bailarinos dançam em tributo à fermentação de determinadas bebidas tradicionais. Nas festas. Contudo, para celebrar os momentos ao ritmo de Katekwe é imprescindível que se seja um casal. Os passos agressivos e muito fortes representam o sexo, o prazer e o assédio.

“As canções de Katekwe falam sobre ‘Madavala’ e a morte. Por exemplo, no título ‘Xicotocoto’, falamos acerca de um feiticeiro que andava na calada da noite a matar os filhos dos outros”. O Grupo de Dança Tafala existe há bastante tempo na província de Tete, enfrentado alguma dificuldade no que diz respeito à expansão da sua dança para outras regiões.

As autoridades de Salulu

Contrariamente ao que se assiste na dança Katekwe, praticada em Tete, em que só os adultos lideram os palcos, no Salulu, um baile típico da província de Cabo-Delgado, as crianças assumem o protagonismo. São petizes com idades compreendidas entre os sete e os 15 anos que, no balançar das ancas e de todos os músculos, essa capacidade incrível que os miúdos têm de acompanhar as cadências, movem o seu corpo e surpreendem quem quer que seja.

De acordo com Marcelino Laba, o representante do agrupamento, a particularidade de Salulu verifica-se a partir da inclusão de crianças, de alguns utensílios pouco usados em algumas danças e da autenticidade dos passos. “É uma dança que se pratica nas cerimónias tradicionais e nos tempos de lazer para alegrar as pessoas”. No Salulu, para a execução dos passos, as crianças vestem-se de roupas coloridas, incluindo lenços, chocalhos e ferramentas de caça. As melodias versam sobre a unidade nacional, a beleza dos rios, da terra e são entoadas na língua macua.

Um baile de mulheres

Usando a gíria popular, as pessoas quando pretendem delinear as fronteiras afirmam que “cada macaco no seu galho”. Esse adágio, que nos sugere outras orientações na sociedade, é igualmente usado na dança. No Lutimbo, um bailado da província de Cabo-Delgado, mais do que respeito exige-se que as pessoas reconheçam o seu lugar na sociedade, sem se intrometer? em assuntos alheios, sobretudo quando não lhes compete. É o mesmo que dizer “cuide da sua vida que eu cuidarei da minha”.

Segundo Marcelino Laba, Lutimbo é um baile feminino. Pratica-se quando as meninas voltam dos ritos de iniciação e no último dia da estada em lugares incertos. Então, baila-se quando as iniciadas se juntam. “Quando as meninas voltam dos lugares incertos, onde aprenderam preceitos sobre a vida, organiza-se uma festa em que são recebidas pelos bailarinos. Na cerimónia, até se oferecem prendas. Consideram a transição de uma menina simples para a iniciada uma passagem de uma vida para a outra. O término de um aprendizado”.

Porém, tal como acontece no Katekwe, no Lutimbo a idade é rigorosamente controlada. Para se fazer parte de qualquer agrupamento que pratica a referida dança, exige-se que os petizes tenham entre 10 e 14 anos de idade. De acordo com Laba, embora seja divulgada constantemente na província de Cabo-Delgado, a dança tem um segredo que os praticantes escondem: “Por isso não vou revelar, mas deve-se ao distanciamento a que as crianças são sujeitas quando partem para as comunidades mais longínquas e impedidas de fazer o que mais gostam. Então, quando regressam fazem tudo o que lhes apetece”.

Questionado sobre o contexto histórico do surgimento desse bailado na sua comunidade, Laba afirma que no mato tudo nasce por vontade da comunidade. Não há nenhuma história registada sobre o seu aparecimento. Um outro aspecto marcante no Katekwe tem a ver com a inclusão de meninas. Segundo explica Marcelino, não é admissível que uma rapariga volte dos ritos de iniciação e seja recebida por homens. E argumenta: “As meninas criam vivacidade. O homem não tem o hábito de mexer as ancas como as raparigas fazem.

As miúdas estilam e mostram a beleza. A mulher é o ser mais belo, principalmente quando dança”. No que diz respeito à aceitação do Lutimbo na sociedade, Laba acredita que “é recebido, mas antigamente havia uma resistência, como se fosse um segredo que as pessoas preferiam esconder pelo resto da vida. Nessa altura, os praticantes não gostavam de dançar de qualquer maneira, senão nos ritos de iniciação”. Portanto, “tudo parte da educação da criança, no geral, e da mulher, em particular. Porém, acho que esse secretismo se deve ao facto de se esconder igualmente a prática de ritos de iniciação”, diz Marcelino.

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