Viajei. Viajo sempre. E ouvi-as nas lendas. Por todo o lado, entre as montanhas da China, nas encostas dos vampiros e nos vales das deusas gregas, nas estepes eslavas e nos lagos aqui de casa – os africanos. Nos lugares onde o vento sopra livre e mesmo nos bairros mais fechados das cidades, podemos ouvi-los… Soltam-se do bater das asas dos pássaros e caem devagar, feitos em perfumes, no rodopiar dos frangipanis, em caminho até ao chão.
Todos sabem, de Norte a Sul, de Este a Oeste. Até lá, acima das estrelas, e mesmo lá no fundo, nas profundezas, é sabido: as respirações são… E eu, eu não sigo pelos caminhos mais pisados, isso é bem claro, e até estou habituada a encontros invulgares, surpreendentes, estranhos, em situações vulgares, banais, quotidianas… mas… Dizem que estão guardadas no ponto três dedos abaixo do nosso umbigo, e que temos um número limite, defi nido na altura do nosso nascimento.
Está no nosso corpo. Aqui, na zona mais sensível de nós. Está armazenado e já existe, mesmo antes de nascermos. Em cada um de nós, o número total de respirações a que temos direito já está defi nido. E podemos usá-las como quisermos, quando quisermos. Mas quando acabam, morremos. Interrompo a ideia e deito-me para trás. Inspiro e expiro suavemente, alongo os tempos, e sinto como consigo duplicar, usando bem o ar no corpo, em cada uma das respirações.
Saboreio o ar como saboreio a primeira colherada de uma sobremesa ou o primeiro gole de um bom vinho, ou aquela fatia de torrada, aquela do meio – sim, não deixo para o fi m, é por aí que começo, devemos usar as coisas enquanto as temos – saboreio bem as respirações. E sei que são minhas, aquele número. A respiração é vital, podemos fi car alguns dias sem comer, menos sem beber e poucos minutos sem respirar. Mas hoje, quando abri a torneira não saiu água…
E penso: será que existe algures armazenada a quantidade de água que cada um pode gastar? Eu adoro banhos e agora, em África, envergonham-me os litros… vivo num dos bairros mais verdadeiros da cidade e é para mim impossível não pensar que fui eu… gastei-a.
É para todos nós coisa estranha esta de pensar que pode ser o depósito, o meu, o teu, o de cada um, que secou… mas houve um tempo em que era assim, a água e a comida, o sol e mesmo a chuva vinham mais ou menos do mérito da descoberta, da procura, do trabalho, e era proporcional, proporcional ao esforço que cada um fazia para satisfazer isto que para alguns de nós são as necessidades básicas…
Vivo em África, e aqui os tempos são outros…
Bom, a partir de agora – pelo menos por uma semana – meus duches serão mais curtos, o champô mais diluído, se também aí as quantidades que me estão destinadas são as que tenho no frasco?..