Há momentos que nos ficam para sempre, que guardamos em segredo e no silêncio, para nada nem ninguém lhes possam tocar. São só nossos. A sua importância é incomensurável e por isso pertencem a outra dimensão. A dimensão rara e perfeita que se sente em certas músicas ou em tardes de Verão, em que nós somos mesmo nós e, apesar disso, conseguimos estar em paz. Eu olhava para ti e via-me a mim e tu olhavas para mim e vias-te a ti, há 13 anos, de mangas arregaçadas para a vida, sozinha, sem mais nada em que confiar do que na tua crença, na tua força e na tua intuição.
Lutaste tanto que agora descansas do mundo na tua janela encantada e transformaste os teus actos em rituais e a tua casa num santuário. Há qualquer coisa de sagrado em ti, uma doçura que perdi há menos tempo do que penso e há mais do que gostaria, uma paz que não vem da terra e quando começas a falar das coisas em que acreditas, é como se te elevasses no ar, como um avião e papel, rápida e leve, caindo com a graça das peças frágeis que só por milagre não se partem.
Fecho os olhos quando me deito e só então aguento ruído infernal de uma máquina a bater cá dentro, sem saber como nem porquê nem para quê, como se o que cá ando a fazer não estivesse certo, não tivesse sentido ou não servisse para nada, e é então que me apareces. Vejo-te sempre a rir, com muitas crianças à volta, ou então, a andar sobre uma linha vermelha, com um véu azul. Dizem que o azul guarda a paz e a eternidade, e o vermelho o fogo da paixão. E tu andas sobre um fio ténue, à tua volta há muito espaço e os azuis combinam-se e entram uns pelos outros sem pedir licença.
Há qualquer coisa de divino em ti, na forma como fixas o olhar antes de adormecer, no toque das tuas mãos no meu pescoço cansado de viver sem pensar, na tua voz de menina sem idade a quem, sem querer, um dia deitei fora todas as bonecas. E no entanto, és terrena, mais terrena e humana do que os bonecos e os animais que povoam o meu mundo feito de palhaços e de mulheres de plástico. E quando choras e limpas os olhos com as costas da mão e te enrolas numa concha a pedir que, por uma vez, te ajudem e te protejam como fazes aqueles que amas, apetece-me meter-te no bolso.
Mas debaixo do bolso perdeu-se um coração que já deve ter sido meu, e eu acho que não aguentavas o vazio, por isso retiro-me da tua vida pensando que assim não te vou magoar, sabendo que, por tudo o que partilhámos e sonhámos juntos, abri sem querer uma ferida que não sei como fechar. Mas acredita, os actos ficam com quem os pratica, por isso quem se sente um avião de papel sou eu, tão insignificante, infantil e frágil como os que o teu filho gosta de fazer, para povoar a tua casa de pássaros que ainda não aprenderam e voar e trazer-te a luz com que alimentas o resto do mundo.