É a segunda vez que vou assistir a uma cena destas – debruada de toques hollywoodianos – numa cidade cada vez mais distante de mim. A primeira aconteceu numa manhã chuvosa, na mais do que buliçosa avenida 24 de Julho, ao fenecer da tarde de um dia sem registo. Agora o protagonismo vai ser escarrapachado na avenida 25 de Setembro, onde, em tempo de emoções fortes e descontroladas, Samora Machel, com a força do poder que detinha nas mãos e no peito e na voz, enviou uma bateria de tanques-lagartos desfilarem no asfalto, para comemorar a data do início da luta de libertação nacional, mesmo sabendo que a passagem daqueles bichos de ferro e aço, iam deixar sequelas que exigiriam, do erário público, um dinheiro que o próprio Estado não tinha, mas que precisava para dar comida ao povo. E Samora Machel mandava tirar esse dinheiro para tapar as fendas de um show-off próprio de um ex-guerrilheiro que sentia – pela primeira vez depois de muitos anos nas matas – o cheiro do betão armado e o veneno do néon, tendo por perto o sonho brutal do Índico.
Estamos novamente num fim de tarde e a baixa da cidade começa a ficar leve, pois os carros que em todas as manhãs invadem a urbe à busca do trabalho e de outros interesses, vindos de vários pontos do grande Maputo, regressam às suas zonas de origem para o devido repouso. As buzinadelas baixam de intensidade. Os jovens que nos incomodam propondo-nos negociatas de bugigangas e outros bens de péssima qualidade, também regressam, aos poucos, à miséria das suas casas. Mesmo assim, nos cruzamentos, onde os semáforos funcionam incessantemente como os corações dos Homens e dos animais e das árvores, a azáfama ainda está instalada.
A noite já cai – irreversivelmente – sobre uma cidade cada vez mais distante de mim, e eu estou sentado na esplanada do lendário Djambu, à espera que o drama de apanhar o “chapa”, de regresso à casa onde moro, reduza, porque nunca vai acabar completamente. Todos os dias vive-se este caos que nos vai moer, lentamente, as vísceras que ainda nos restam. E já atingimos o ponto em que pensamos como os sábios: vale a pena rir-me dos meus próprios infortúnios, continuar a lutar e respirar como as orcas. Amanhã o dia será melhor!
Na avenida 25 de Setembro, em quase toda a sua plenitude, agora o tráfego baixou drasticamente. Reina o néon e a tranquilidade. Já se podem ouvir pequenos sons que será impensável detectá-los no rebuliço da Cidade das Acácias. Já se pode também conversar sem erguer a voz e sente-se um distender dos músculos de um corpo que passa a maior parte do dia sob forte tensão.
Na esplanada há pouca gente – que bebe café ou simplesmente conversa – e, quando me preparo para a retirada, eis que quatro polícias, com armas AKM em riste, cercam o pequeno bar do Djambu e revistam-nos com os olhos. Os dedos estão nos gatilhos das armas apontadas para os nossos peitos, o que significa que, qualquer gesto mal calculado, qualquer tremelique no dedo, pode resultar numa catástrofe, porque matar músicos, poetas e jornalistas da dimensão dos que estavam no Djambu naquele momento, seria na verdade uma catástrofe para o país!
Os polícias não levaram cinco minutos e retiraram-se, relaxando no passeio, provavelmente porque terão chegado à conclusão de que a pessoa que procuravam não estava entre nós. Mas esse não será ainda o fim.
De repente, apareceu um homem alto, forte, bem vestido, que vinha aparentemente sereno. Caminhava em direcção à esplanada, vindo do lado do Hotel Tivoli, só que, quando viu os homens fardados – e estes também o viram- recuou e pôs-se em fuga, tentando atravessar a “25 de Setembro”. Os polícias engatilharam as armas, deram-lhe o aviso para que parasse e o homem ignorou isso. Dispararam para o ar e, mesmo assim, continuou a fugir e, quando já estava na outra margem, junto à Imprensa Nacional, saíram balas mortíferas das armas dos agentes da autoridade, que fulminaram um homem robusto.
Quando o desgraçado – que ia a uma velocidade das próprias balas – foi atingido, reduziu a passada. Com elegância. Continuou a movimentar as pernas e os braços. Oscilou para a direita e para esquerda. Dobrou o corpo para a frente com os braços abertos como um dançarino de mapico e, no seu último gesto, cedeu para o lado esquerdo, indo ao encontro do paredão da Imprensa Nacional.
Encostou-se, caiu lentamente, até ficar numa posição estranha: morreu ajoelhado, como morrem os feiticeiros.