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Heliodoro Baptista: calou-se uma louca e incómoda voz

A notícia da tua partida apanhou-me no estrangeiro e chegou-me através de um meio que tu nunca dominaste: a internet (não uso essas tecnologias, dizias com um certo desdém). A tua tecnologia foi a pena e com ela, como se de uma indústria robótica se tratasse, foste inovando gradualmente essa arte sublime da escrita que é a poesia.

Lembras-te? Fomos apresentados em Outubro de 1994 no bar K do Embaixador, pelo nosso amigo comum, o Chico, que partiu também um pouco antes de ti. Eu andava a cobrir a campanha eleitoral para as primeiras eleições multipartidárias e na Beira a temperatura política subia pelo menos tanto como o mercúrio no termómetro. O Chico avisou-me antes da tua chegada: – Vais conhecer um gajo maningue desbocado mas é um dos poucos que nunca se vendeu.

Pouco tempo depois lá apareceste tu com o habitual boné enfiado na cabeça, a esconder uma cabeleira em desalinho. Falavas alto, sem receios, sem delicadeza, mas com franqueza, com desassombro. Lembro-me também de que fumavas muito, segurando os cigarros entre o indicador e o médio amarelecidos pela nicotina. Aos poucos, depois de ganhar uma certa confiança coadjuvada por alguns copos de whisky, comecei a fazer-te perguntas sobre a tua vida. A algumas respondeste, a outras disseste que estava tudo num livro que nunca me chegaste a dar.

Mas falaste-me dele: das perseguições políticas que sofreste, das humilhações, dos castigos na praça pública (logo tu que tanto lutaste e ansiaste pela independência do país), das propostas de mordomias que altos dirigentes te fizeram para calar a tua voz incómoda demais para quem amava a verdade (mas não vendi a alma ao diabo, dizias com um orgulho desmedido e compreensível.) Por isso é que, anos mais tarde, quando te encontrei entre o pó dos livros na tua Thandi me disseste que tinhas recebido uma ordem de despejo da tua casa de sempre: o prédio da Emose junto do “100 à Hora”.

– Recuso-mo a pagar renda. Não tenho elevador há mais de 20 anos!, – dizias indignado. A mesma indignação com que olhavas para o enriquecimento ilícito dos velhos camaradas agora transformados em capitalistas exacerbados.

– Nem sequer têm pudor. É uma vergonha! – dizias, enquanto davas uma volta de carro comigo pela cidade apontando com o dedo censório as casas e as propriedades dessa gente à qual nunca quiseste pertencer.

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