Terminei de ler, no domingo, a obra “Cicatrizes de Mulher”, de Sofia Branco. O livro tem como abordagem principal a excisão feminina ou mutilação genital. Com este livro, percebi que o machismo é muito mais possante do que aquilo que as mulheres desejam para elas. É perturbador saber que as pessoas recorrem a práticas diabólicas para controlar e perpetuar a dor sob a capa da tradição e de hábitos seculares. Com que iluminação se cortam os lábios vaginais de uma mulher de forma artesanal – com facas e paus – com o objectivo de conter a sua sexualidade? Que tradição é essa que fere o corpo da mulher? Desprover o outro do prazer é crime.
Percebi, para a pequenez da humanidade, que os números contam mais do que os sentimentos. Todos os dias ouvimos falar de numerosas pessoas consideradas as mais ricas do mundo. Inúmeras pessoas que são mortas em conflitos armados em Darfur, Costa de Marfim, Uganda, Ruanda e República Democrática do Congo. Quando ligamos a televisão assistimos a reportagens de acordo com as quais muitos cidadãos vivem com o rendimento mínimo de trinta e cinco meticais por dia.
Escutamos na rádio – embora esse hábito esteja a morrer nas zonas urbanas – informações segundo as quais as pessoas ficam apinhadas em camionetas (agora chamadas de “my love”) porque há falta de transporte e são chamadas, insultuosamente, “a thihomo” (“olhem os bois”, numa tradução contextual de Xichangana para a língua portuguesa).
Pessoas catalogadas de bois, porque elas se transformam em animais que se comportam como se fossem ao matadouro. Até é divertido dizer “a th homo” ou chamar bois a pessoas iguais a nós. Notícias como em Muxúnguè morreram centenas de pessoas por causa de uma paridade que nuca reflectirá a equidade que desejamos, também são comuns. De modo similar, ficamos a saber que se deitam toneladas de batata e tomate no lixo, enquanto milhares e milhares de pessoas morrem de fome. Sem ironia, até aqui, ainda se fala de números que só reflectem a vergonha da humanidade.
Focalizando-se nos números, ninguém tem a coragem de falar, com profundidade, acerca do tráfico de mulheres, da lapidação de mulheres que são acusadas de adultério como se o homem não fosse adúltero. Ninguém tem a coragem de falar sobre a mutilação genital que é usada como prática tradicional, cultural ou religiosa, enquanto, na verdade, o objectivo é controlar a sexualidade da mulher. Podemos quantificar o sofrimento das mulheres em números?
Para o caso da excisão, podemos dizer que, em cada minuto que passa, quatro raparigas são sujeitas à mutilação genital. Mas devemos ter em conta que além das estatísticas, dos números e dos gráficos que enchem alguns relatórios, existe a dor. Repito, além dos números e estatísticas, existe a dor. A excisão é a amputação da vida. Os homens – com o consentimento de algumas “mamanas” – acreditam que perpetuando a extirpação vão controlar a mulher e o seu prazer sexual. Contudo, esquecem-se de que por detrás dessa prática há custos que se resumem em doenças, mortes e crianças que não chegam a nascer. O pior é que o prazer é transmutado em sofrimento.
Waris Dirie, modelo e actriz somali, vítima dessa obscenidade, disse: “A mutilação feminina não tem base cultural, tradicional ou religiosa. É um crime que exige justiça”. É incrível a condição aterradora em que a excisão é feita. Algumas famílias abastadas recorrem a instalações hospitalares para fazê-la. Mas, a maioria esmagadora é constituída por mulheres mais velhas de lugarejos que fazem os cortes nas raparigas, sem anestesia, utilizando apenas uma lâmina, uma faca ou qualquer outro objecto cortante e, naturalmente, sem nenhuma esterilização. A “satura” é feita frequentemente com um pequeno fio ou apertando um ramo ou “bush torn” – uma planta com um enorme espinho encontrada nas zona rurais. Para cicatrizar a ferida são usadas ervas ou cinzas, ficando a rapariga com uma região pélvica e as pernas enfaixadas por períodos que chegam a quarenta dias. As consequências imediatas são fáceis de adivinhar – dores e infecções que geram a morte.
Esta prática, que é um autêntico atentado aos direitos humanos, é feita de três maneiras: a “sunnah” é a forma mais leve que implica o corte da extremidade do clítoris. Na clitoridectomia, é removido o clítoris completo e os lábios menores da vulva. Já na infibulação, a operação mais violenta, retira-se todo o clítoris, bem como os lábios menores e maiores da vulva e, em seguida, trata-se o ferimento – através da cosedura – deixando-se apenas um minúsculo orifício para o escoamento da urina e do sangue menstrual.
A infibulação é frequentemente designada de “circuncisão faraónica” por ter, presume-se, a sua origem no Egipto. Como uma maldade destas pode ter uma característica faraónica? Ser faraónico é perpetuar mágoa, pesar e tirar alento aos inocentes? Usar a dor do outro para invocar a tradição é crime. Ao considerar-se isso como um ritual de passagem à idade adulta está-se diante de um crime porque muita gente morre. Se essa prática é sincrética e faz-se em lugares afastados da aldeia, entre mulheres, estas devem ser sensibilizadas de modo a mudarem de atitude, a fim de optarem por um ensinamento de ritos de iniciação mais eficaz: um aconselhamento para encarar a vida adulta e familiar.
É por esta e outras práticas obscuras que se mutila a dignidade da mulher – praxes perpetuadas pelo machismo. Devemos marchar e erguer a bandeira para “deslobolar” o mundo das práticas masculinas e esclavagistas contra as mulheres. Alguns homens conscientes estão convidados a fazer parte da nossa marcha, porque homem que é homem respeita o ventre. P.S.: Recomendamos a leitura da autobiografia de Waris Dirie: “Flor do Deserto” e a que se assista ao filme com o mesmo título, em que a modelo somali desempenha o papel principal alertando para esse mal que definha as mulheres.
Cremildo Bahule