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Inharrime: a ponte treme nas bases

Inharrime: a ponte treme nas bases

O que me levava àquela terra dos chopis era a ponte. Em risco de ser destruída pelas águas do mar. Que agora caminham contra o rio. São cerca de 100 quilómetros da cidade de Inhambane até lá. E o que vou encontrar durante o percurso são as marcas do tempo.

Estava motivado a fazer esta reportagem. Sobretudo porque ia sacudir a modorra de acordar de manhã e ir para os mesmos lugares. E ver as mesmas pessoas. E depois não ter nada para escrever. Ou pior ainda, escrever aquilo que os políticos gostam de ditar aos jornalistas.

Acordei cedo e o meu desejo era viajar no autocarro da empresa Putco, por ser uma viatura cansada e, por isso mesmo, incapaz de desenvolver grandes velocidades. Também porque o seu interior é espaçoso e dificilmente abarrota. Para além de que não tinha pressa. Mas aquilo que seria um gozo para mim foi contrariado. Enquanto estava na paragem, na zona de Nhapossa, meu bairro, começou a chover a partir do nada, ao mesmo tempo que parava, à minha frente, um minibus de marca Toyota Hiace, vulgarmente chamada “Ten Years”. Não podia continuar a tomar um banho forçado. Enfiei-me naquele pequeno autocarro a contra-gosto, pois são inúmeras e nefastas as histórias que acontecem e que se contam na estrada sobre este tipo de viaturas, geralmente conduzidas por jovens. Irresponsáveis. Que querem chegar depressa por causa do dinheiro. Só que, em muitos casos, chegam depressa sim, ao inferno, arrastando consigo quem não tem nada a ver com essa brutalidade.

Chove devagar sobre o asfalto de uma estrada estreita e irregular nos primeiros trinta quilómetros até Lindela, onde os carros se ramificam para vários destinos. As bermas estão comidas pela erosão. Os carros trepidam, com todos os inconvenientes mecânicos que isso representa. E já se falou tanto sobre a necessidade urgente de se reparar aquele troço. Mas até hoje não se fez nada.

Estou sentado no banco da frente. Entre mim e o condutor está uma menina com fortes sinais de uma doença qualquer. Mete pena, mas não posso fazer nada senão sentir pela sua dor. Olho de vez em quando para o jovem que vai ao volante, “perscrutando-lhe” os sinais. Se houver algum embate frontal eu serei um dos primeiros a irem à maneta. Mas mesmo estando no banco da trás pode-se morrer num choque frontal e salvar o que está à frente. Por isso estou tranquilo quanto a isso. O que me me preocupa agora é saber como é que este homem conduz.

Estamos em Mutamba, um lugar de maná onde as terras são férteis e o subsololo está cheio de argila, explorado para fabricar materiais de barro e blocos para construir habitações. Olho em vão para o traço imaginário por onde passava o comboio, cortando a estrada, para carregar o barro e não vejo nada. Senão a máquina a vapor na minha cabeça. Vejo algumas bancas com produtos expostos, onde a banana será a mais saliente. E ainda tempos cerca de oitenta quilómetros pela frente.

O “Ten Years” está a andar moderadamente. A prudência do condutor nas ultrapassagens, nos cruzamentos e nas curvas transmite-me segurança. E aí sim, posso tirar à vontade os detalhes da minha viagem.

Dois quilómetros antes de Lindela virámos à esquerda, em direcção à sede da localidade de Jangamo, e há muitos anos que eu não passava por ali. É uma estrada de terra batida, que emparelhava com a linha férrea até à estação. E hoje a linha não está lá. Retiraram vorazmente todos os carris. Já não se vê por onde era estendido o aço. Não há vestígios visíveis. Ou construíram casas por cima do antigo traçado, ou abriram uma rua, ou fizeram machambas. O comboio não volta mais.

Em Jangamo, pelo menos na via principal, não há nada para ver, mesmo estando a funcionar a fábrica de descarroçamento de algodão. A vida é levada ao ritmo dos ponteiros de um relógio que já não marca as horas. Ou está à espera de funcionar em pleno, ou voltar a funcionar intensamente, quando começar a exploração das areias pesadas.

Mas eu estou de passagem. Vou a Inharrime ver a ponte. E já parou de chover. No interior da viatura não há ninguém a conversar. Os vidros estão todos fechados por causa da corrente fria matinal. Os passageiros estão encolhidos como pintainhos por debaixo das asas da mãe. O condutor está bem agasalhado. Pisa suavemente no acelerador e voltamos para a estrada de esfalto, no derradeiro troço para Lindela. Que tem, de um lado, uma imensa planície que nos vai fazer lembrar as lanças de Mudungazi, e do outro, um riacho com plantas que se sentem muito bem na água. Há poucos bois por ali, contrariando uma imagem de sonho do antigamente, quando manadas e manadas pastavam com fartura num verde que hoje foge para o castanho.

Eu vou a Inharrime. Ver a ponte. E agora estou na Estrada Nacional Número Um (EN1), onde o perigo em si espreita constantemente. Os camiões são aos magotes. Que vão para cima e para baixo. Cruzamo-nos com enormes autocarros andando a alta velocidade. Esquecendo de que a morte pode estar à espera ali à frente. E eu olho para o “meu” condutor. Que continua a conduzir sereno. Obedecendo a todos os sinais de trânsito.

Na zona de Cumbana as tangerineiras ainda estão pejadas de fruta. Saborosa. As bermas da estrada estão inundadas de coco à espera de compradores a granel. Aqui e ali vêm-se cachos da sempre apetecida banana. Mas nós não paramos. Passamos por Nhacoongo e o piripíri da dona Rachida é irresistível. Ali sim, sustivemos a marcha. Comprei um frasco de achar de manga e uma bacia cheia de banana-maçã, para levar para casa.

Volta a chover e estamos a poucos quilómetros de Inharrime. Quase vinte. Ou trinta. Um grande painel indica-nos o projecto de óleos e sabões Maeva e dizem-nos que por ali existem grandes plantações de feijão buere, muito apreciado na Índia.

Inharrime também, como Jangamo, não tem muita coisa para ver. O campo de futebol, à beira da estrada, lembra-me o tempo em que Inhambane tinha um campeonato provincial de futebol muito disputado. O famoso Calton Banze, em representação do Desportivo, jogou naquele recinto e um dos seus mortíferos remates, que resultou em golo, foi anulado pelo árbitro por pôr em perigo a integridade física do guarda-redes. O árbitro justificava-se: se o homem tivesse defendido aquela bola, era uma vez.

Já estou em Inharrime. Antes de ir à ponte fui à antiga estação dos Caminhos-de-Ferro de Moçambique, onde o último chefe da estação se chama Achirafo e hoje já lá não está. O edifício, histórico e arquitetónico, transformou-se num bar onde tudo acontece. Está a ruir por dentro. O relógio, característico das estações de comboio, parou quando a locomotiva deixou de funcionar. À volta da estação ergueram-se barracas de sobrevivência, onde se vende de tudo um pouco. E tudo isso encarregou-se de apagar a história de um tempo que nos pertence. O comboio saía da cidade com passageiros de mãos a abanar e voltava cheio de produtos diversos para abastecer o mercado local, a preços muito baixos. Era também um regalo viajar de comboio, como se estivéssemos no Texas. Mas hoje tudo isso acabou. A actual geração não saberá nada sobre esse tempo. Porque ninguém está preocupado em preservar a história dos Caminhos-de-Ferro de Inhambane.

Perigo na ponte de Inharrime

A Reportagem do @Verdade esteve lá na semana passada. Para ver de perto aquilo que é relatado amiúde por pessoas que conhecem a situação. E o que constatou é isso mesmo, o acesso da plataforma do lado sul está em perigo. Os fundamentos que sustentam a obra estão a ser assoreados. A Direcção Nacional de Estradas, através da sua delegação em Inhames, colocou sacos de areia e pedras de grande dimensão para travar o avanço das águas do mar que, em tempos de maré alta, enfurecem-se e tentam galgar, inclusivamente, a estrada. Aliás, na sequência desse fenómeno natural, já foi comida uma parte significativa da via, ainda do lado sul, o que leva a recear um desastre se não forem tomadas medidas urgentes.

Desde os primórdios, até há bem pouco tempo, era o rio Inharrime que desaguava no mar. Obviamente! Mas hoje, esse percurso parece estar a ser posto em causa. O mar está em subversão. Repele as águas doces. Para quem vai de Maputo a Inhambane, chegado à ponte, tem o rio do lado esquerdo, que vem da nascente em serpente para despejar as suas águas doces nas águas salgadas. E a história indica-nos que ali mesmo, perto da plataforma, havia crocodilos. Mas hoje esses lagartos aquáticos desapareceram por causa da salinização. O pior é que, a par da invasão, o mar está a criar destruição na estrada, havendo necesidade de uma intervenção profunda e urgente para se evitar o pior. E as fotos que tirámos no local falam mais do que nós.

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