Quando em Maio certo crente afirmou que “sinto que da mesma forma que – uma vez por ano – os árabes vão a Meca em adoração a Maomé, a minha Meca é a peregrinação à Nossa Senhora de Fátima em Namaacha”, ele expressou a vontade de perpetuar a tradição. Em resultado disso, ano após ano, o número de crentes – com enfoque para os jovens – cresce continuamente. Mas o que está envolvido na peregrinação?
Os milhares de homens e mulheres que no mês passado, em nome da peregrinação à Nossa Senhora de Fátima, percorreram 80 quilómetros a pé, da cidade de Maputo à Vila de Namaacha, já retornaram ao quotidiano comum. E, provavelmente, ainda que alguns aguardem por uma transformação na vida, a verdade é que já se devem ter esquecido da dor de tamanho sacrifício.
Outro facto é que para quem, como nós, acompanhou o percurso, conversando com os peregrinos, uma pergunta permanece: “O que move as pessoas a desafiar distâncias e sacrificar o próprio corpo, em adesão à peregrinação?”
A resposta curta, clara e objectiva é a fé. No entanto, se ficássemos contentes com esta síntese, em certo sentido, estaríamos a menosprezar uma série de construções – ou, se quisermos, motivações – algumas das quais cómicas e outras excêntricas exprimidas por alguns peregrinos.
“Não precisámos de carro. Apanhámos a boleia da fé para peregrinar até Namaacha”, disse certa mulher, algures em Maputo, antes de em Impaputo, onde se instalou um núcleo improvisado de apoiantes ao peregrino, encontrarmos quem rejeitou o apoio. “Não quero massagens, água nem chá. Só preciso de chegar a Namaacha”, disse e continuou a peregrinar.
Perante o comentário segundo o qual “neste ano eu pequei maningue, então deixem-me peregrinar” – expresso por um jovem cujo nome não apurámos – rimo-nos não, necessariamente, para o desvalorizar mas devido à forma cómica como falou. É provável que haja nessas palavras alguma verdade, afinal, por natureza, o homem é pecaminoso.
Na Vila de Namaacha, com 52 mil habitantes, onde se encontra a Paróquia da Nossa Senhora de Fátima, incluindo outros ícones da Igreja Católica, há crentes que se filiam a outras congregações religiosas. De qualquer modo, os líderes religiosos asseguram que o município é, essencialmente, católico.
Peregrinos desde a infância
Em Namaacha, a abundância de idosos peregrinos, muitos dos quais percorreram os 80 quilómetros em menos de 24 horas, é uma prova da manifestação de fé. A par de muitos outros, sentados numa poltrona, encontrámos Américo Mário Martins, de 65 anos, e o seu compadre, o senhor Bomba, de 63 anos de idade, a conversar sobre o ritual em que participam.
Ambos pertencem à Paróquia da Ka Tembe. Peregrinam desde a infância. Por isso, cada um deles possui uma história peculiar que move-lhe a preservar o ritual.
“Estudei na Missão Católica até à terceira classe elementar, mas depois não tive condições de continuar. Ou seja, na verdade, eu nasci na Igreja Católica. Ao longo dos anos, conheci pessoas que se mudaram para outras religiões – o que eu jamais farei”, comenta Bomba para quem a vida não faz sentido sem a peregrinação.
O crente fala do tempo colonial para explicar que “por causa do sistema vigente, naqueles anos a peregrinação era uma acção prestigiosa praticada por uma minoria. As pessoas tinham medo de confessar os seus pecados à Nossa Senhora de Fátima”.
A sua opinião é corroborada por Filomena Amade, ex-funcionária de um banco, de 59 anos de idade. “Naquele tempo nós estávamos ocupados em actividades políticas do país. Havia pouca participação dos jovens nas Igrejas. Agora, com a democracia, tudo é possível. Por exemplo, eu nunca peregrinei e é por isso que apoio quem aceita este desafio”.
Por sua vez, Américo Martins afirma que “eu não conheci os meus pais mas, ao longo da vida, Deus ajudou-me a tornar-me homem sem incorrer em procederes imorais. Sou casado, tenho filhos e sou feliz. Por essa dádiva, expresso a minha gratidão ao Criador peregrinando. Sinto que da mesma forma que, uma vez por ano, os árabes vão a Meca em adoração a Maomé, a minha Meca é a peregrinação à Nossa Senhora de Fátima”.
Com uma abundância de ideias, às vezes controversas em torno do ritual, a par de Américo Martins e de Bomba, também encontrámos Fernando Lopes Gameiro e Helena Ofélia, ou simplesmente, Vovó Ofélia. Com mais de 50 anos de idade, uma experiência de 40, Gameiro que vive na cidade da Matola é quase uma autoridade na peregrinação.
Diz ele que “já peregrinei por alguns anos, mas depois percebi que não é isso o que Deus aprecia. Ele alegra-se mais com o comportamento quotidiano das pessoas e não por um sacrifício, muitas vezes, exibicionista”. O crente engendra um argumento empírico e defende o seu ponto de vista. “Há pessoas que vêm exibir que peregrinam, mas depois não praticam os ensinamentos divinos”.
Na variedade de ideias em torno do mesmo credo, Vovó Ofélia resume a discussão, dizendo que “oferecemos o sacrifício da peregrinação à Nossa Senhora de Fátima para que ela interceda por nós. Queremos que a nossa vida seja ajustada. Por exemplo, eu gostaria que a minha família continuasse estável”.
A peregrinação cresce ano após ano. No entanto, se para alguns crentes a fé em Deus é a força motriz que os move a agir, para outros, as desgraças sociais (pobreza, miséria, desemprego, fome, doenças, por exemplo) que assolam o povo são outros factores que os levam a procurar amparo na Igreja.
O que aconteceu com a Igreja
O senhor Bomba, da Paróquia da Ka Tembe, disse que uma das suas súplicas a Deus – na cerimónia peregrina – é a necessidade de Deus influenciar os governantes para preservarem a paz.
Entretanto, perante a loucuras sociais – entendidas como, por exemplo, o número cada vez mais crescente de meninos da rua, de mendigos, de prostitutas, de bolsas de fome, de desempregados, de doentes, bem como revoltas em diferentes áreas de actividade – há quem tenha encontrado oportunidade para questionar o papel da religião.
Por exemplo, em jeito de desabafo, Américo Martins considera que “para mim é muito chocante que, nos dias actuais, haja igrejas que afirmam que fazem milagres sem, no entanto, prestarem assistência aos milhares de enfermos que povoam os nossos hospitais”.
O crente congratula-se com a difusão massiva da palavra de Deus. De qualquer modo, perante a vivência social habitual, qualquer comentário seu revela, em si, uma preocupação.
“Se em todas as religiões reza-se a Deus, a fim de que o mundo melhore, porque é que, nas cidades, as ruas estão cada vez mais infestadas por mendigos? Porque é que os religiosos que fazem milagres não se unem de modo que – com base no poder que Deus lhes concedeu – apoiem o Governo a minimizar a miséria do povo?”
Em Maputo, por exemplo, “as desgraças aumentam na mesma proporção que se edificam novos templos. Então, isso faz-me pensar que alguma coisa não está certa na religião. Penso que para Deus não devia haver propagandas. No entanto, no dia-a-dia, somos confrontados por gente vestida de fatos, a propagandear o seu nome”.
O crente afirma que nas cidades, muitas pessoas consideradas dementes – quando nem sempre o são – alimentam- se de lixo, com tranquilidade porque não têm outra alternativa. É por essa razão que se questiona o papel da religião. “Onde é que está o papel social das Igrejas, muito em particular as propagandistas, para suavizar estas misérias?”
“Eu não tenho muitos estudos. Mas o que sinto é que nos dias actuais, por causa da abundância de desgraças e das ameaças de guerra, as pessoas, sem outras alternativas, acabam por procurar algum consolo na Igreja”.
“Ainda não senti o chamamento para ser freira”
Entre as pessoas que este ano peregrinaram à Paróquia da Nossa Senhora de Fátima de Namaacha, encontrava-se a jornalista Nélcia Tovela. Na sexta- -feira, 11 de Maio, a crente preteriu a escola e o trabalho. “Queria demonstrar a minha fé e provar a mim mesma até onde acredito em Deus”.
Dos 80 quilómetros, Nélcia percorreu um pouco mais de 70 até que, quase destruída pelo cansaço, implorou por apoio. Congratula-se com a meta alcançada, assegurando-se de que em 2014 irá triunfar. Para si, a peregrinação não é uma mera maratona. É, acima de tudo, “uma expressão de caridade”. Nos parágrafos que seguem Tovela, de 21 anos de idade, fala da sua primeira peregrinação à Namaacha.
“Desde 2012 planeio peregrinar, mas, por causa de problemas de saúde, naquele ano não pude. A pretensão moveu-me a preparar-me logo no início de 2013. Para o efeito, orei a Deus para que me desse força até que, finalmente, me senti fortalecida para materializar a vontade.
Enquanto os dias da peregrinação não chegavam, Deus aumentou a minha fé. Ganhei confiança de que a minha decisão estava certa e que iria fazer todo o percurso a pé, o que não aconteceu. Não obstante, foi uma boa experiência porque, espiritualmente, me sinto bem.
A par de outros elementos do grupo juvenil da Paróquia da Nossa Senhora de Laulane, parti às 8 horas. Mas, ao longo da jornada, percebemos que os nossos passos não eram os mesmos. Por isso, dispersámo-nos.
De uma forma geral, tive quatro paragens para descansar. Uma em Boane, onde tomei sopa, outra em Goba e em Mandevo até que cheguei ao Controlo Policial – uma distância que é percorrida em cerca de 30 minutos até a Paróquia de Namaacha – onde, por causa do cansaço, apanhei o carro de apoio. Já não dava mais. De qualquer modo, não me sinto frustrada.
Compreendi que, de facto, a peregrinação não é uma simples maratona. Antes de mais, ela é uma expressão de caridade. Por essa razão, assim que eu sentisse que precisava de descansar fazia-o, da mesma forma que prestei apoio aos outros.
Ao longo da caminhada, nós rezámos o terso, entoámos as canções ligadas ao tempo e à Maria – o que nos fortifica mais – pois, caso contrário, se apenas andássemos por andar, rapidamente, ficaríamos stressados e agastados.
Por um lado, é preciso ter em conta que os peregrinos fazem vários pedidos, mas os essenciais não são necessariamente os materiais. Queremos que haja mudanças no sentido espiritual na vida, bem como no modo de pensar. Fiz um percurso tranquilo porque só havia peregrinos. De vez em quando passavam os carros de apoio, mas faltou-nos água.
No próximo ano vou chegar ao Santuário da Maria. O percurso é muito sofrido, mas, quando há crença de que com a peregrinação está-se a fazer o bem, a motivação é maior.
Na vida, tudo, incluindo o bem-estar, depende da motivação e da força espiritual. De qualquer modo, ainda não senti o chamamento para ser freira. Sacrifiquei um dia de aulas e de trabalho para peregrinar porque queria demonstrar a minha fé”.
Não basta peregrinar…
Na comunidade de São Vicente de Paulo, nas proximidades do cruzamento de Impaputo, há um canhoeiro frondoso que sombreia o seu entorno. É lá onde os peregrinos, muitos dos quais chegaram a Namaacha com os pés inchados, encontraram os primeiros apoiantes estabelecidos.
Filomena Mpfumo, de 59 anos, e mãe de quatro filhos, a par de outras mulheres, ofereceu-lhes uma sessão de massagem e uma xícara de chá. Os peregrinos que naquele dia, dada a ausência da Cruz Vermelha de Moçambique, não encontraram assistência parecida louvaram a Deus. Para que se perceba parte da sua motivação em prestar caridade, Filomena estabelece uma premissa real.
“Há muitos jovens, no país, que se esforçam a fim de se formarem. No entanto, findo o curso, eles não encontram emprego, o que é frustrante”. Por exemplo, “em Impaputo, dada a existência dos bóeres que possuem bananais, os moços que concluíram a 10ª classe têm uma actividade que lhes vale dois mil meticais por mês”.
Mas para uma pessoa que tem esposa e filhos, tal rendimento mensal não é suficiente. Diariamente, “eles esforçam-se muito, acordando às 5 horas para retornarem a casa no fim do dia, mas não ganham nada”. É nesta realidade que Filomena se inspira para ajudar os peregrinos.
“Quando alguém tem uma aflição nunca se dirige primeiramente ao pai. O aflito fala com a mãe ou com a avó. Nesse sentido, eu sei que os jovens que passam por aqui têm alguma aflição no seu coração”.
Ora, se aos curandeiros, mesmo que sejam consultados, não se fala de tudo. No entanto, em relação a Maria – que é a mãe de Jesus – não se esconde nada, descarregam-se todos os pesares”.
Isso significa que “as pessoas precisam de descarregar os seus problemas, mas, para tal, devem confiar na mãe Maria”. Então, “os meninos que peregrinam têm a certeza de que descarregando os seus fardos na mãe de Jesus serão atendidos”.
O problema é que alguns peregrinos – que revelam os seus problemas à mãe Maria – “querem ser atendidos imediatamente, o que nem sempre é assim. Ela mostra-lhes os passos que se devem seguir, os quais são marcados pelo sacrifício, pela caridade e pelo perdão”.
Ou seja, “não basta peregrinar. Há um conjunto de rituais que a pessoa deve seguir para que a sua vida seja ajustada”. De uma ou de outra forma, “gostei de ter prestado apoio às pessoas. A experiência permitiu- -me perceber o que estou a fazer na vida. Se Deus me conservar a saúde, espero que no próximo ano possa dar o mesmo contributo”.
“Vim fazer dinheiro aqui”
Em relação aos stands onde foram expostos os signos da Igreja Católica – como, por exemplo, o terso, as fotos papais, as camisetas, os chaveiros, as canetas entre outros brindes – adquiridos em moldes comerciais, certas figuras paroquiais recusaram- se-nos a utilização do termo feira religiosa.
“Está-se diante de um arranjo que a Igreja encontrou para colocar determinados recursos à disposição dos crentes”, disse um dirigente religioso.
No entanto, mesmo que haja um termo específico, o qual não nos foi revelado, analisada sob o ponto de vista secular, a arrumação não escuda a componente económica da religião. Aliás, no mesmo campo, conhecemos a vendedeira Maria dos Anjos, de 44 anos. Ela é crente da Igreja Católica. Há dez anos que reserva os dias da peregrinação para fazer negócio. Este ano não foi diferente.
Engajada no seu trabalho, Maria dos Anjos comunica- se com as pessoas, atrai clientes, afinal o seu objectivo é claro: “Vim fazer dinheiro aqui”, comenta enquanto prepara um frango, ao mesmo tempo que fala da sua experiência.
“Sou casada e mãe de três filhos. A minha primeira filha tem 26 anos. Fabrico e comercializo mobília na minha casa. Há dez anos, vendo frangos aqui. Penso que tem sido uma boa experiência – ainda que, muitas vezes, cansativa – porque constitui a minha procura de pão. Normalmente, sirvo carne de frango com xima ou arroz e salada de alface.
Nos primeiros anos, o negócio era muito rentável porque, contrariamente ao que tem sucedido nos últimos três anos, as pessoas não traziam comida própria.
Por exemplo hoje, sábado, o negócio está mau. Nos outros anos, até ao meio dia, parte significante dos 200 frangos que tenho teria sido consumida. À noite a demanda é menor porque as pessoas vão à procissão.
Dado que no recinto da paróquia não se aceitam bebidas alcoólicas, a maioria dos jovens que querem beber fica muito distante daqui, o que não é bom para o negócio.
Seja como for, estou feliz com o facto de, ano após ano, o número de crentes crescer. As motivações dos peregrinos são várias, alguns vêm fazer promessas outras expressam a sua gratidão à Nossa Senhora de Fátima”.