Era aquela hora da tarde em que o céu começa a ficar maduro, e avermelha-se, fingindo que o tempo é um fruto quase a anoitecer. O tempo fluía com a serenidade de um pássaro. O rosto do jornalista estava denso, pesado, como um céu carregado de nuvens, pronto para escrever tempestades.
Por trás, eu não lhe via o rosto mas adivinhava, pela forma como se dobrava para manusear suas ferramentas: esferográfica sobre um bloco.
De colete, uniforme clássico, e calças de ganga, sentado num banco da marginal, com a atenção obcecada para o horizonte, anotava no bloco o que por lá pescasse. Gestos silênciosos, usava a esferográfica com a mesma leveza que se maneja um cinzel, e no bloco pesava a densidade do texto que esculpia.
O olhar, paciente e distante, viajava pelos céus. Umas vezes em vôo agitado, outras parecia pousar delicadamente sobre nuvens. Num repente, surpreendi-o a olhar de soslaio, para a minha sombra que se aproximava. Não olhou para mim mas reconheceu-me certamente a sombra, com o faro de jornalista.
Continuou concentrado. Apesar de calmo, as pálpebras eram dois pisca-piscas irrequietos e as pupilas eléctricas agitavam-se com a minha presença. Ficara assim esquisito, com um parafuso desapertado nos miolos, havia poucos dias.
Passou a viver muito concentrado, em constante estado de jornalismo, sempre a farejar as coisas, de pulover, bloco e esferográfica. Passou a ser jornalista à full time. O resto da vida vivia-a em freelancing. Já não conversava com as pessoas, entrevistava-as. Aos amigos via-os apenas como fontes de notícias, as coisas todas eram apenas matéria para as reportagens.
Às vezes, de repente, regressava das jornalices e gargalhava ou chorava. Quando lhe perguntássemos de quê se ria, dizia que se ria deste mundo. Se lhe perguntássemos porquê chorava, dizia que chorava por este país.
À mulher já não falava, entrevistava apenas, seguindo à risca os cinco Ws: ONDE estiveste? QUE mercado é esse? o QUE foste comprar? com QUEM foste? COMO foste lá parar? PORQUÊ foste lá? e anotava num bloco. Aos filhos reportava crónicas de dormir. Até as intimidades do casal eram matéria para editoriais.
Ficou assim pancado, disse-se, por causa do custo de vida. Coitado. Jornalista ganha pouco. A loucura agravou quando regressou de Icidua, “Um lugar para não viver”, onde reportou o cúmulo da miséria humana. Reportando o Moçambique profundo, ficou traumatizado com o estado da nação.
Pousei os sacos de boas festas que me pesavam os braços. Aproximei-me, amigo, com a complacência que se tem por pessoas desparafusadas, mantendo, porém, distância segura, nunca se sabendo a reação de um louco.
– Rui, tudo bem?
– Schchch! – Fez-me um sinal com o braço – Não faças barulho. Estou a ver o tempo.
– Ver o tempo?
– Sim, ver o tempo a vir.
– A vir de onde, Rui?
– Lá, vês? Deixa-me trabalhar – impacientou-se. Eu não via. Até onde eu sabia, o tempo não se vê. Ele demorava-se no horizonte antes de me responder, impaciente com o meu questionario.
– Trabalhar a ver o tempo correr?
– O tempo não corre. Voa.
– Mas como consegues ver o tempo?
Virou-se para mim zangado, com os olhos sofridos, vermelhos, pálpebras despenteadas, insónias nas rugas, olhar flácido, malangatánico.
– Estás a entrevistar-me?
– Não, nada disso. O jornalista aqui és tu.
– Entao, schchch, silêncio. Deixa-me trabalhar.
Respeite-lhe a intimidade. Fiz-me em mil silêncios. Ele redobrou a atenção, parecia medir os milímetros do horizonte. Foi ele quem reiniciou a conversa:
– Vês o mar? As ondas são segundos chegando.
– Mas para quê precisas ver o tempo?
– Para informar. Estou a espera do ano novo. Vem de longe, sabe-se lá o que estes estrangeiros andaram a fazer com ele. A falsifi cá-lo talvez.
– Porque não deixas o trabalho, vamos beber umas cervejas, brindar o fim do ano.
– Tenho o dever de reportar quando ano chegar. As pessoas têm o direito de estar informadas. Sabes, a distância mais curta entre uma pessoa e o mundo, é a informação, uma reportagem muito bem elaborada.
– Vais passar as festas aí?
– Festas? – voltou a olhar para mim – Não, não acho que haja muitos motivos para se festejar.
– Mas hoje é dia de festa. Fim de ano.
– Isso não me diz absolutamente nada – agitou-se – A vida não se circunscreve aos dias de festa – deu-me costas, virando-se para o horizonte. – Há pessoas que não têm o que comer, nem nestes dias de fartura. Merecem o mínimo de respeito. Eu tenho de cumprir o meu papel, informar. Vou reportar a chegada desse tal ano. Se cada um cumprisse com zelo o seu papel, este país cresceria lindamente.
Decidi deixá-lo sozinho, com suas jornalices poéticas. Recolhi meus sacos de compras. Ia fazer-lhe um voto, daqueles que se fazem por estas alturas, quando me antecipou:
– O calendário é a mentira do tempo. Não me desejes essas coisas de “boas entradas e boas festas”.
– Mas…
– O país precisa mais do que festas para crescer. Deixa-me.
Deixei-o, pensando até onde não seriam lúcidas as frases daquele louco. O louco, assim falando, deixava-me com dúvida, se a loucura era um lugar apodrecido no juízo da gente ou a podridão deste lugar em que vivemos.