A história que se segue relata o exemplo de quem usou a fé na medicina e – com vontade própria e ajuda de familiares – venceu o estigma do SIDA mostrando que a seropositividade, afinal, não é sinónimo de morte rápida.
É meio-dia de domingo, dia 15 de Fevereiro, e estamos num dos bairros novos de Maputo onde os comentários ainda gravitam à volta do lendário São Valentim, esse inventor do 14 de Fevereiro. O céu está nublado, porém o calor é de cortar a respiração. Umas jeans azuis-claras e uma blusa vermelha apenas servem para complementar a beleza natural da jovem Melita: a sua pele de cor da areia da praia, altura mediana, corpo de viola, peito coroado por seios hirtos e o sorriso largo são de fazer cair água da boca de qualquer homem que se preze. Acomodada à volta de uma mesa colocada debaixo de uma frondosa mafurreira, uma festa pomposamente organizada sob pretexto de mais um aniversário de um membro da família Magagule está no clímax. A linda Mel – como é carinhosamente tratada – de minuto a minuto interrompe a conversa para atender o seu telemóvel top gama. Ou levanta-se para dar o gostinho ao pé cujas unhas estão envernizadas a vermelho que se sintoniza perfeitamente com a sua blusa decotada. São 15 horas mas o céu teima em continuar cinzento e ainda não sopra pé-de-vento. Num ambiente assim, a Mel vai deixando, moderadamente, cair, goela a baixo, uns pingos frescos de um bom Porto tinto, intercalados por nacos de frango.
Com esta descrição, o leitor pode imaginar-se diante de uma mulher igual a tantas mulheres pelo mundo fora. Pode ter razão. Mas, de momento, aceite, como sói dizer, tirar o cavalinho da chuva: a Mel , sobre a qual escrevemos, é diferente por apenas ser seropositiva: quando os médicos lhe disseram “ você tem o vírus do SIDA” ela desanimou. Ficou deprimida. Pensou que não havia mais saída senão morrer. Que a notícia que recebeu dos médicos era uma sentença para a morte iminente. Mas, por algum desses mistérios da existência humana, ela foi devolvida à vida.
Dureza da vida
Não sabemos porque a relatamos. Esta é, se calhar, a parte mais triste da biografia da Mel, a de fazer verter lágrimas mesmo aos menos sensíveis: em Maio de 2000 ela tinha apenas 14 anos, quando, em brincadeiras de adolescentes, ela engravidou do vizinho Raimundo, dois anos mais velho. Sacudido com a notícia e, amedrontado por conselhos diabólicos da vizinhança, o namoradinho fugiu precipitadamente para a terra do rand. Não para buscar sustento, e, sim, para ficar ao fresco daquilo que considerava ser o maior problema da sua vida.
Para trás ficou a tenra Mel, grávida. Como um azar nunca vem só, a mãe da Mel que mal se aguentava desde que seu marido partira para junto de Deus cinco anos antes, faleceu, deixando no mundo ela e o seu irmão, apenas três anos mais velho. Desempregados e entre a orfandade e a gravidez indesejada, a Mel e o irmão mergulharam num mar de amarguras: se por um lado os vizinhos evitavam-nos pela sua situação de extrema carência, doutro, enfrentava o estigma que sobre ela desabara por, como se comentava, ter-se deixado engravidar por um miúdo, apesar de que a tinham avisado, asseverando-lhe que “esse Raimundo é um irresponsável.”
Na sua vida e na condição natural, a de ser feminina, Mel, naturalmente, contava ser mãe. Mas não aos 15 anos, como viria a sê-lo nos princípios de 2001. Com o pai emigrante – e avôs defuntos – o pequeno Ray (de Raimundo, nome que a mãe atribuiu em homenagem ao foragido pai biológico) apenas teve amparo na semana que nasceu, como a própria mãe confidenciou ao @VERDADE: “contrariamente ao que aconteceu quando engravidei, quando tive o parto recebi abraços de alguns vizinhos e familiares”.
Mas foi sol de pouca dura: nas semanas seguintes, os parabéns e as ofertas sumiram. “Fiquei sozinha com o bebé nas mãos”. Como os desígnios da natureza são definitivamente insondáveis, Mel contou com a pronta ajuda do seu irmão que nessa altura interrompeu os estudos e empregou-se como ajudante de um mecânico ambulante na rua ao lado.
Conto da queda
ao abismo
O bairro do Jardim (onde na altura viviam) continuava impotente em relação à triste vida da Mel. O Ray já tinha dois anos e a mãezinha 17. Ainda assim, uma vida condigna demorava a abraçá-los. E, no seu lugar, o sofrimento de serem órfãos castigava-os sem piedade. Ainda nas mazelas do estigma de isolamento de que eram vítimas, e longe de ilusões, Mel e o irmão decidiram regressar à escola da cidade de Maputo. Mas a falta de dinheiro fê-los, inúmeras vezes, faltarem às aulas . Comida cada vez escasseava numa casa sem luz nem água .
Todavia, “num dia chuvoso eu ia à escola quando um toyota Prado prateado parou como que quisesse atropelar-me”, recorda-se. E, quando os vidros fumados e eléctricos se abriram, ouviu um ‘entra!’. E “entrei” . Já no interior, Mel foi atacada por uma sensação de estar a viajar para a lua, tal era o conforto do interior. E o carinho do sexagenário Sigaúque.
Era o começo de uma viagem de queda para o inferno: nesse dia, em vez de deixá-la na escola, o defunto empresário vovô, que em vida respondia por Sigaúque e era forte, escuro e com cara quadrada, levou-a para uma sua quinta, algures na cidade da Matola. “Foi nesse dia que, depois de dois anos, voltei a fazer amor”. Se no passado, ela fora vítima de um sedutor adolescente, desta vez, “ fui à cama com um homem com idade de meu pai ou avô.”
Mas uma coisa confessa ter lhe intrigado: por que razão um homem muito rico e com a idade de seu pai era solitário numa casa luxuosa? O mais terrível ainda: “ Porque não aceitou fazer amor com preservativo?” Mas, como ela própria referiu, quem estava na lama e vivia quase da mendicidade como ela, evocar o lado da moral da vida poderia ser fatal. E, então? “ Fechei os olhos e adormeci.” Acordada somente pelos beijos e picadelas da barba branca mas bem cuidada do Sigaúque, estava na minha mão um envelope com dez mil meticais e um bilhete a dizer: “ Bem vinda ao nosso clube!”
A marca do estigma
No começo não percebeu a razão de receber tanto dinheiro e muito menos o significado do bem vinda ao nosso clube. Foi necessário esperar oito meses para o bairro, ao receber a notícia da morte do Sigaúque, fazer a sua autópsia à moda popular e espalhá-la: “ Foi vítima do SIDA, tal como o foi a sua esposa um ano antes.”
Nos cerca de oito meses em que durou a relação amorosa com o sexagenário, Mel teve a rara oportunidade que só poucos têm: o poder – e o prazer – de chamar dinheiro por tu. A sua vida financeira mudou como a noite muda para o dia: tinha comida à fartura, boleia ou taxi para escola, roupa de grife. Isso, porém, atraiu falsos amigos. E verdadeiros inimigos também. “ Os primeiros queriam comer comigo”, cogita, explicando que os segundos combatiam-me por pura inveja da vida folgada que eu exibia. Mas ambas as alas uniam-se contra Mel. Logo que se espalhou a morte do madala, os cobardes – pelas suas costas – e os corajosos – de caras – chamavam-na “Sidália”, um cognome associado à morte do seu ex-amante supostamente devido à doença do século. “ Já não deixavam o meu filho brincar e pegar coisas dos vizinhos e até chamavam-no ‘o filho da Sida’!”
… e da vida positiva
Como outros milhões de moçambicanos, a Mel não nasceu (para ser) seropositiva. Por isso defende que a sociedade, no lugar de apedrejá-la, devia ampará-la. Mas nessa era turbulenta, eis que o foragido namorado Raimundo regressa da África do Sul, vítima de xenofobia. E ensaia reatar a namoro. Como o pretexto era “ para juntos cuidarmos do Ray, aceitei-o de mãos e coração abertos”, confidencia Mel.
Em 2005, Mel e Tonito – o segundo filho do casal na altura com cerca de um ano – caíram no leito do hospital, vitimas de múltiplas enfermidades: comichões e diarreias imperáveis, corpos carcomidos, com muitas feridas insanáveis. As febres altas, emagrecimento contínuo, apenas completavam a bola de neve dos infelizes. Foi quando o seu irmão incentivou-a a fazer o teste e a família recebeu a (má) notícia: excepto o Ray (o primeiro filho do casal), que acusou negativo, Mel e o Tonito são portadores do vírus da SIDA.
Mau agouro: o marido, esse, recusa-se terminantemente a fazer o teste. Em confidência ao @VERDADE ele afirma: “prefiro ser seroignorante”. Alega temer ser corrido da empresa onde assume o cargo de chefia e ser isolado pelos amigos e vizinhos do bairro onde agora moram.
Mesmo diante de renitência do marido em saber o seu estado de serológico, de imediato ela decidiu seguir, à risca, todas a recomendações médicas. “ No começo, senti muito medo e fiquei insegura”, diz ela, sublinhando que “ a coragem do meu irmão ajudou-me a cumprir rigorosamente a orientação médica : tomar o cocktail e cuidarmo-nos ao máximo para não contrairmos doenças oportunistas.”
Resultado? Hoje sorridente, “fofa como sumaúma” e estudante nocturna, Mel cuida da casa e diariamente vai deixar/buscar o Tonito na escolinha. E tem um sonho: “ ver o meu menino crescido, e nós os dois a estudarmos numa
faculdade”.