Mais um ano está prestes a findar. Nesta aldeia global, em que o mundo se transformou, momentos de festa, de celebração, principalmente de reflexão, irão instalar-se. Momentos de reflexão porque se quantificarmos os actos e as formas de renegar a existência alheia – a discriminação, o abuso e a violação sexual, a violência doméstica… – determinadas formas de Ser Homem deveriam ser sepultadas eternamente, no passado que 2011 será em breve.
É um pouco disto que a mostra de arte contemporânea visual e audiovisual – Ser Homem – patente no Centro Cultural Brasil-Moçambique, em Maputo, nos ensina.
No ano prestes a findar houve homens que massacraram as esposas. Outros ainda – em jeito de quem demonstra arrependimento – a cada momento que violentavam, torturavam, agrediam a mulher, escreviam uma declaração prometendo mudar de postura. Debalde! Foram palavras desprovidas de valor. Apenas palavras e, mais palavras, até que a quantidade de carta-declaração superou os 12 tempos que compõem o ano.
“Declarações do esposo de uma constituinte, fornecidas pela vítima. Estas cartas são um retrato cru de um homem que constantemente maltratou a sua mulher durante mais de 30 anos. Aqui são exibidos documentos que datam de um período entre 1998 e 2011. Este homem, depois de violentar a sua esposa fazia uma declaração”, lê-se num documento anexo às cartas que agora se tornaram objecto de arte para a mudança social.
Tais declarações a pedido da Rede HOPEM – Rede de Homens Pela Mudança – encontram-se patentes na Exposição Nacional Sobre Masculinidade e Violência Contra a Mulher – Ser Homem.
Outro conjunto de depoimentos em formato áudio – que deixa a nu a precariedade da vida nas estradas moçambicanas – é o exposto pela jornalista sociocultural moçambicana Rosa Langa na sua conversa com as profissionais do sexo que encontram nos camionistas, verdadeiros donos da noite, (não mais que potenciais) mais clientes de uma indústria – a da volúpia – que se consolida diariamente.
As crises sociais, digamos carestia da vida, escassez de alimentos, fraco (ou nenhum) poder aquisitivo de dinheiro que assola as pessoas, recrudesceram as relações interpessoais. Isto, na amostra em alusão, é demonstrado/explicado como factor que contribuiu para que os homens encontrassem, poucas vezes, na figura feminina um ser humano. Mas antes, um objecto de exploração e violação sexual.
As catanas, as facas, as correntes metálicas, os paus… perderam a sua função primária. A de serem adereços para auxiliar o homem em actividades domésticas, assim como agrícolas. Tornaram-se objectos contundentes, armas brancas que impensadamente podem (e ao que tudo indica, agora devem) agredir a mulher. Para onde se vai com tanta violência?
Em Moçambique a violência doméstica, a perpetrada contra a mulher e a criança inspirou muitos artistas para a produção de arte em vários campos. Cinema, Teatro, Música, Pintura, etc. No entanto, desengane-se quem pensa que tal produção reflecte algum apoio a este cenário. Muito pelo contrário. Trata-se de um repúdio que deve ser seguido por toda a sociedade.
A imprensa encarregou-se – na sua actividade informativa, mas também formativa – habitualmente a denunciar todas as situações descritas. E pelo que a amostra revela a situação é muito preocupante.
Masculinidade – feminilidade
Na sua comunicação exposta no Centro Cultural Brasil-Moçambique, o sociólogo moçambicano, Carlos Serra, dá a impressão de que os problemas sociais que assolam as sociedades contemporâneas, em particular a moçambicana, podem advir de algumas construções sociais e compreensões que se tem em relação à figura masculina, assim como à feminina.
É que – conforme diz – “a masculinidade é um termo que reenvia de imediato para a força, força que discursivamente encontra no falo um dos seus ícones mais representativos. Aquele que ainda não saiu da garrafa (para usar uma expressão típica no sul do país), que depende da mulher, não é homem.”
Interpretando a masculinidade como sendo a negação da feminilidade, Carlos Serra engendra e coloca- -nos uma profunda questão em que reflectir: “são os homens que constroem como homens, são eles os únicos autores da masculinidade, apenas eles?”
Sobre o assunto, a sua resposta, simples, clara, quanto objectiva: “não”. Para si, “quer a masculinidade enquanto conjunto, quer a masculinidade enquanto ideologia justificadora, são também produto das mulheres, da feminilidade e do feminismo.”
É, no entanto, dentro deste contexto que a Rede Homens Pela Mudança (Rede HOPEM) surgiu em 2009 para se opor a tal tendência social. Uma série de actividades, com destaque para marchas apelativas para uma transformação social positiva têm sido desencadeadas até esta parte.
A mostra Ser Homem pode ser considera uma forma de – em finais de 2011 – levar o seu posicionamento ao extremo, juntando associação e mais de 25 instituições, profissionais, personalidades e artistas das mais diversas áreas.
A situação continua preocupante
Numa visita efectuada por @Verdade ao Centro Cultural Brasil-Moçambique, uma breve conversa se estabeleceu com Júlio Langa, o coordenador nacional da Rede HOPEM. E, em síntese, deixam-se os pontos sublimais:
@Verdade: O que é a Rede de Homens Pela Mudança (HOPEM)?
Júlio Langa (JL): HOPEM significa Rede de Homens Pela Mudança. Fundamentalmente surgiu em 2009, altura em que um conjunto de pessoas – com destaque para os homens – percebeu que a solução dos problemas da sociedade não devia ser relegada exclusivamente à responsabilidade da Mulher.
Ou seja, que o seu combate devia envolver tanto as mulheres como os próprios homens – tidos como protagonistas. Fala-se aqui de problemas como da violência contra a mulher e a criança, a discriminação da mulher nos vários campos da vida social, os crimes contra si perpetrados.
É, portanto, esta associação de problemas – muitos dos quais originados pelo homem contra a mulher – que nos moveram a reunir sinergias para que em Moçambique se edificasse um programa, um conjunto de acções com vista à sua problematização, compreensão, ao mesmo que se devia buscar a sua solução.
Aqui, o objectivo é a necessidade de se construir novas identidade, novas alternativas sobre maneiras de pensar, de agir – para os homens da nossa sociedade – assim como novas formas de se ser homem.
@Verdade: Colocam em causa a educação masculina…
JL: Estamos preocupados com a maneira como tem sido feita a educação masculina. É nosso pensamento olhar para o que mexe com a génese desta educação – masculina – que a mulher moçambicana é sujeita a situações que não a dignificam. Tudo decorre da maneira como nós, os homens, nos comportamos na sociedade. É notório que, nos dias que correm, o comportamento do homem moçambicano, quando analisado à luz dos nossos valores, da tradição, da cultura, tem sido muito desviante.
Bastas vezes trata-se a mulher como se fosse objecto sexual. Portanto, é uma relação muitas vezes desprovida de cumplicidade. Ora, tratando-se de um problema relacional que – por conseguinte – não é exclusivo à mulher, pensamos que o envolvimento do homem na sua resolução se reveste de capital importância.
@Verdade: Nota-se que neste trabalho deu-se mais ênfase à figura feminina. Porquê?
JL: Regularmente a Rede HOPEM tem realizado marchas a envolver figuras públicas masculinas. É uma forma de estas entidades, figuras públicas, pessoas importantes que, de certa forma, influenciam o comportamento das pessoas, expressarem a sua rebeldia em relação a alguns procedimentos machistas.
Esta questão da masculinidade, da discriminação da mulher que é por nós contestada, muitas vezes tem valido uma compreensão errónea. É como se estivéssemos preocupados em favorecer mais a mulher. Mas o facto é que este cenário revela-se prejudicial a toda a sociedade – homens e mulheres.
A ênfase para a defesa e protecção da mulher deve-se ao facto de ser nossa compreensão que a figura feminina é a que mais sofre com algumas acções perversas do homem.
Isto resulta da educação desigual entre homens e mulheres. Da maneira como os homens são educados. Ora, no fundo os resultados deste trabalho só favorecem toda a sociedade, porque se formos a reparar enquanto as mulheres sofrem de algumas acções maléficas dos homens estes últimos quando não conseguem resolver tais conflitos têm tendências de se afundarem em quantidades olímpicas do álcool. E os resultados de tal consumo exagerado, muitas vezes, têm sido desastrosos.
Temos notado que a tendência dos homens têm sido abusar do álcool, dominar a parceira, como forma de demostrar o seu poder. Nós estamos preocupados em mostrar que há outras maneiras de ser homem, que não implicam necessariamente a violação dos nossos (próprios) direitos humanos, assim como dos da Mulher.
Mais adiante perguntámos ao Coordenador Nacional da rede HOPEM, sobre até que ponto este movimento de denúncia às práticas masculinas concebidas como maléficas para o desenvolvimento social – que muito bem a imprensa tem feito – estará a contribuir para o advento de uma sociedade mais justa e de justiça social, ao que respondeu:
É preciso ter em conta que não são todos os homens moçambicanos que maltratam as mulheres. Há uma parte de homens que antes se quer distanciar desta prática. Ora, em contra-senso a isso, existem igualmente mulheres que maltratam, que agridem, que violentam os homens.
No entanto, o mais preocupante é que os homens que se distanciam da violência doméstica contra a mulher não encontram – na sociedade – um ambiente encorajador dentro dessa (boa) postura social. Outros ainda revelam-se favoráveis à iniciativa da Rede HOPEM, associando- se a ela como forma de introduzir o seu testemunho na sociedade em defesa da mulher. Portanto, estão a acontecer algumas mudanças ainda que muito lentas.
De qualquer modo, analisando o problema – mesmo com a existência de acções a si antagónicas – o quadro de violência doméstica contra a mulher em Moçambique continua preocupante e crítico. Por exemplo, o informe do Ministério do Interior e as informações que a imprensa moçambicana diariamente publica dão testemunho a isso.
“É que não há uma (única) semana em que, em Moçambique não ocorrem casos de violações (graves) dos direitos humanos da mulher”, diz.