Ouvi bater a porta. Há quem bata cinco desinibidas vezes: “go! go! go! go! go!”, violentas ou retraídas pancadas, cinco vezes significam sempre intimidade e facilmente se adivinha quem é. Há quem cometa três tímidos toques: “toc! toc! toc!”, com muita licença. No caso foram apenas modestas duas chamadas, tímidas mas decididas.
Suspendi o raciocínio e suspirei desagradavelmente contrariado. Larguei o mouse. Subi os óculos para a testa e afaguei os olhos, assim, com o indicador e o polegar a juntarem-se devagarinho. Rebusquei com os pés o par de chinelos. Atravessei os cómodos e caminhei impaciente até a cozinha, para atender pela porta de trás.
Rodei energicamente o manípulo da fechadura e espequei na porta com a postura de macho em demarcação territorial. Devolvi os óculos aos olhos. Estiquei o pescoço e a cabeça descaiu para a frente, inclinando-se ligeiramente para um lado. O homem, a três degraus de mim, no pátio traseiro do meu prédio, entendeu a minha pergunta muda e disse:
– Bom dia!
– Bom dia! – O meu pescoço subiu, desceu e a cabeça inclinou-se para outro lado.
– Sou desentupidor – disse, completando com um olhar de soslaio para a água que borbulhava da fossa, percorria o páti o do prédio até a rua, e tresandava. Disse-me que farejara a matchimba e seguira o rastro das águas até ali.
– Desentupidor? – O meu pescoço contraiu-se defensivamente, projectando-me a cabeça para trás. O meu rosto fez uma carranca desconfiada. Endireitei os óculos, estudando- o de baixo para cima e de cima para baixo.
Desentupidores não trabalham assim cuidadosamente trajados: sapatos inclinados ao peso do corpo, mas devidamente lambidos à graxa, calças engomadas cedendo ao arco das pernas curtas e fortes, a camisa usada mas branca, branquinha!, como num anúncio do mais eficiente dos detergentes.
Não poderia ser um desentupidor. Nem sequer trazia aquele arame comprido e enrolado ao ombro que denuncia os desentupidores, nem sequer tinha os dedos sujos de descabaçar as entranhas das canalizações, e nem sequer tinha os lábios calejados pelo trompete da tubagem.
– Esse assunto resolva com a comissão de moradores – despachei-o.
– Mas o senhor é quem mora no rés-do-chão e apanha com a porcaria toda. As pessoas que vivem lá em cima não se vão preocupar com isso.
– A comissão está a tratar. Mandaram vir um camião cisterna…
– Mas o senhor vai suportar este cheiro até eles decidirem resolver? Isto pode ser resolvido num ápice – olhava para o pátio estudando, pela disposição das fossas, o percurso da tubagem, e diagnosti cando, pelo comportamento das águas vertentes, a localização do problema.
– Meu senhor… – impaciente, endireitei os óculos, ia falar-lhe da minha formação em construção civil, da maratona de livros sobre águas negras que já passaram por mim, que não precisaria dos ensinamentos dele sobre o assunto, e que não ti nha o direito de me interromper para me falar de fezes.
– Eu vivo no subúrbio, e o senhor vive no rés-do-chão, somos iguais. Sabe, rés-do-chão é o subúrbio dum prédio – calou-me com esta frase sábia –, assim como o subúrbio é o rés-do-chão urbano. Que comissão se preocupa com o subúrbio? – fez uma pausa – E no final das contas, o rés-do-chão suporta o peso dos outros andares. Agora pense na matximba deles, cai para onde? Carregamos-lhes e ainda lhes suportamos as fezes.
Diante do meu silêncio, desabotoou e despiu a camisa, expondo o tronco musculado no ginásio da dureza da vida.
– Os que estão lá em cima – prosseguiu, enquanto fazia com o dedo indicador um gancho que encaixou na pega metálica da tampa da fossa – não se preocupam connosco – um gesto brusco levantou a tampa mais facilmente do que a alavanca dum pé-de-cabra – se não nos garanti mos…
Com a fossa aberta o cheiro fermentado adensou-se-me nas narinas.
– Há quem viva mais abaixo do rés-do-chão – prosseguiu – nas caves da sociedade, nas catacumbas da vida, no esgotos da existência, e acabam assim – apontou para os ratos e as baratas afogados na pasta cheirosa da fossa.
Ajoelhou-se diante da fossa, protegendo o joelho e as calças com um papelão, e como se mandasse à fava todas as minhas engenharices, vergou o tronco enfiando o braço nas fezes, tacteando as paredes da fossa procurando o canal que a ligava à outra.
Inclinou-se mais e afundou o braço até ao ombro, rebuscando na tubagem as coisa que obstruíam a circulação das águas, algumas reconhecíveis, outras corroídas pelas fezes: peça de roupa, livro, penso higiénico, talher…
Mergulhou mais fundo encostando com a bochecha as espumas das fezes, e a água da caixa começou a vazar, quando, num gesto brusco, resgatou de lá um volume enorme, escurecido pelo lodo, mas muito reconhecível: uma boneca. Com o braço a respingar cocó, mostrou-me.
– Está a ver? – Disse – brinquedos que os filhos deles não precisam e os nossos não têm, obstruiu o normal andamento das águas.
Sacudiu com a ajuda da outra mão o braço sujo. Ouvia-se o som oco da fossa a escorrer fezes aliviadamente.
– Pronto – levantou-se protegendo as calças dos salpicos das fezes.
– Quanto é? – perguntei rendido à efi ciência do homem.
– Qualquer coisa – respondeu sem olhar para mim, desviando o olhar.
– Mais ou menos quanto?
– Um agradecimento, para comprar pão para as crianças
– encabulava-se ao falar em dinheiros, inclinando a cabeça para o ombro.
Fechou a tampa da fossa. Lavou o braço e recompôs-se nas vestes.
– A vida está difícil, mas eu desentupo-me – desabafou enquanto recebia o dinheiro. Agradecendo, estendeu-me o braço, o mesmo que há pouco mergulhara nas fezes. Nos dedos gordos sobressaíam as unhas mal lavadas. Cedi ao aperto de mão, rendido à eficiência do homem. Foi-se embora. E eu, ao som confortante dos dejectos escorrendo livremente, percebia que na vida é indispensável um desentupidor de serviço, para a porcaria toda fluir.