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Trabalhar trabalhando

Trabalhar trabalhando

Por imposição ou escolha, o ser humano tem de se adaptar às circunstâncias da vida, para não sucumbir. Actualmente, os guardas, um pouco por todo o país, ‘inventa(ra)m’ formas de ganhar dinheiro no posto de trabalho. Uns fazem esteiras e lavam carros; outros vendem rebuçados e cartões de crédito para telefone.

Danilo Mungoi, de 27 anos de idade, solteiro, natural da Zambézia, depois de ter passado a infância no norte do país, mudou-se de armas e bagagens para um dos locais mais inóspitos da cidade de Maputo: o bairro hoje havido por Mingueni.

Uma mudança bastante significativa, já que aquele lugar outrora coberto de machambas viu, sobretudo nos últimos anos, as hortas perderem terreno e, pouco a pouco, surgirem residências imponentes, umas atrás das outras. Aliás, foi, efectivamente, o parcelamento dos mangais que levou ao bairro o grosso dos actuais residentes. Sabonete é desse tempo, e viu o bairro ganhar corpo num local onde nunca imaginou que se pudesse erguer uma habitação.

Mudar de vida

Contudo, há instantes que mudam uma vida. Para Sabonete o destino mudou com essas construções. Num dia em que “tinha soruma das boas”o único local onde se fumar podiam fumar à vontade foi aterrado. Foi-se o mangal e, logo, foi-se a vontade de fumar. Sabonete, que não fazia nada a não ser drogar-se, decidiu então arranjar um emprego numa daquelas casas que lhe roubaram o habitat. Foi “fácil” arranjar emprego.

Foi contratado como guarda e passou a auferir 2500 meticais. Porém, a vida cedo mostrou-lhe de que tinha de engordar o seu salário para pagar as suas contas. Se é certo que o emprego permitiu-lhe construir um quarto, não é menos verdade que o que ganhava “não chegava para 30 dias”.

Desde que percebeu isso, Sabonete sabe que depois do primeiro salário, na sua vida, há um antes e um depois. “Pela primeira vez, tive a consciência de que ter emprego não é suficiente para viver decentemente e um trabalho significa apenas uma forma de atrair biscates”.

Todos fazem alguma coisa

“Não há guarda que não venda recargas de telemóvel ou lave carros de vizinhos dos seus patrões”, conta. É, garante, “a única forma de sobreviver. Com o dinheiro das recargas tenho o pão e o transporte (a mulher é empregada doméstica no centro da cidade) e dos carros as refeições”.

“Cobro 30 meticais por carro e às vezes dão-me mais”. Sabonete não sabe, ao certo, quantos carros lava por dia. Até porque a actividade é feita debaixo das barbas dos patrões. “A água que uso é deles. Mas não saio daqui com menos de 200 meticais”.

Engana-se, no entanto, quem pensa que Sabonete ganha por mês, no ‘negócio’ da lavagem de viaturas, 6000 meticais. “Trabalho 15 dias por mês”. Ainda assim, o somatório fica 500 meticais acima do seu salário: 3000.

Nos outros 15 dias, ao contrário do que seria normal, Sabonete não fica em casa, instala-se nas imediações do mercado Janete para vender recargas. “Dormir!? Isso faço no serviço à noite. Um guarda que queira viver condignamente não leva uma vida normal. Às vezes descanso, mas isso só quando as folgas calham no fim-de-semana”.

Entre o salário, recargas e lavagem de carros, Sabonete consegue poupar 2000 meticais depois de fazer o rancho e pagar a luz. “Água compro nos vizinhos. Um bidão custa um metical”.

Normalmente, o trabalho que Sabonete exerce é associado à baixa instrução. Porém, o jovem de 27 anos não cabe nessa estatística. Concluiu a 12a classe, mas largou os livros. Viu, sentado no muro da zona, vizinhos e colegas de escola ingressarem na universidade.

Na primeira pessoa explica-se melhor: “Eu até era um bom aluno, mas para continuar os estudos tinha de ganhar algum dinheiro. Os meus pais morreram (em 2008) e com eles a possibilidade de continuar a instruir-me. Naquele período comecei a fumar soruma, enquanto isso o dinheiro que os meus pais tinham poupado ia acabando. Depois conheci a minha actual mulher. Quando o dinheiro acabou tive de arranjar formas de ganhar a vida. Procurei trabalho na cidade, mas ninguém dava emprego a uma pessoa mal vestida e com 12a classe apenas. A única alternativa que me sobrou foi a de ser guarda. Foi assim que aprendi a sobreviver”.

No norte do país

No roteiro que se aplica à grande parte dos guardas no país, no seu posto de trabalho, Timóteo França, de 36 anos de idade, busca uma alternativa ao seu salário e, consequentemente, aumentar a renda familiar, produzindo esteiras. Rigidamente sentado numa cadeira de plástico na entrada principal de um edifício, a primeira impressão com que se fi ca é de que se trata de apenas um passatempo.

Com uma faca na mão, França vai trabalhando a palha. Faz isso todos os dias para ver o tempo passar. Mas essa não é a sua principal motivação, uma vez que, afirma, “o salário nunca chega para suprir todas as necessidades da minha família. Compramos um saco de arroz ou farinha de milho, óleo, pagamos a conta de luz e ficamos sem dinheiro. É sempre bom arranjar mais alguma coisa para ajudar nas pequenas despesas diárias”.

Há menos de um ano que trabalha como vigia de uma residência algures na Rua das Flores, na cidade de Nampula. Entra às 8h00 e despega às 17h30, de domingo a sexta-feira. Sábado é dia de descanso, o qual aproveita para ir cortar palha. Aufere um salário de dois mil meticais por mês. “Faço esteiras e vendo para comprar alguma coisinha para casa. Não é grande coisa, mas ajuda”, conta.

Por mês, produz, no mínimo, uma esteira. Vende a 200 meticais, valor que faz muita diferença no rendimento mensal. Mas não é só ele que contribui para a renda familiar. A sua esposa dedica-se à venda de bolinhos e badjias na porta de casa.

Graças ao dinheiro que eles amealham através dessas actividades alternativas ao emprego, é possível colocar comida na mesa (quase) todos os dias. Quando o tempo permite, a produção de esteiras ganha corpo. Nesses meses o dinheiro do saco do arroz sai daquele negócio.

Vivendo maritalmente, França tem três filhos, um neto e mora, com a sua família, no bairro da Muhala-Belenenses num pequeno cómodo que herdou do seu irmão já falecido. Antes de abraçar a profissão de vigilante, França trabalhava, no sector de construção, como servente de uma obra.

Devido à actividade desgastante que exercia, adoeceu, tendo ficado três dias sem se dirigir ao local de trabalho. Uma vez que não conseguiu obter o atestado médico para justifi car a sua ausência, perdeu o emprego.

Mensalmente, ganhava 1800 meticais. “O dinheiro era muito pouco para o tipo de trabalho que fazia, mas por falta de emprego aceitei”, diz.

Sem trabalho e com uma família por sustentar, Timóteo França viu no comércio informal parte da solução dos seus problemas. Vendia farinha de milho e mandioca no mercado dos Belenenses. “Mas o que eu procurava era um emprego, algo que me garantisse um salário fixo todos os meses. Vendendo farinha, saía sempre em prejuízo, pois nem sempre comercializava o que adquiria para o efeito”, diz.

No entanto, alguns meses atrás, França seguiu os conselhos de um amigo que lhe propôs um emprego de guarda. “Hoje, estou aqui a trabalhar. Passo o dia inteiro sentado. Não é o que sempre sonhei, mas a falta de emprego levou-me a este trabalho”, afirma sem tirar os olhos da faca e da palha nas suas mãos.

Além de servente, França dedicava-se à comercialização de combustível lenhoso. Todos os dias tinha de percorrer pouco mais de 60 quilómetros de bicicleta para comprar carvão vegetal e revender nos arredores da cidade de Nampula, mas a avaria do seu único meio de locomoção e também as despesas para adquirir o produto precipitaram a falência do seu negócio.

Ainda há anciãos

No quarteirão 4, no Bairro de Khongolote, são duas horas quando Aurélio Nhavene, de 45 anos de idade, chefe de um agregado familiar de sete pessoas, sai de casa andrajosamente vestido. Àquela hora o bairro é apenas seu, não há lugar para vergonhas. Vai a um terreno no seu bairro ‘bater’ blocos. Às quatro, regressa. É o seu biscate diário, a “safa” que lhe engordará o rendimento mensal inferior a dois mil meticais. A rotina de Nhavene será esta durante um mês.

Aurélio Nhavene é rebento de uma época em que a cabeça dos jovens era inundada pelo sonho de rumar às minas da África do Sul. Todavia, a aventura da emigração nunca lhe rimou nos ouvidos. Lá para longe, só partiu duas vezes. Foi até Nelspruit, com uma muda de roupa, para trabalhar nas “farms”: “Com essas economias criei sete filhos. Dois Deus já mos levou.”

João é vigia de um estabelecimento comercial na baixa da cidade. As madrugadas são passadas, porque o salário não “dá para nada”, a fabricar blocos para um funcionário público que não os pode comprar.O biscate permitir-lhe-á arrecadar 1000 meticais, o suficiente para comprar um saco de arroz de 25 quilos, sobrando-lhe alguma coisa para o transporte.

Uma profissão dura

Nesta profissão, não importa o local de trabalho ou salário, o relato repete-se. Este é um trabalho paupérrimo, que vive, basicamente, do “amanhã Deus dará”. Mais do que a especulação de preços nos retalhistas, é aos governantes que os guardas imputam a culpa pelas compras de miséria feitas no mercados informais, um produto por dia para aproveitar os descontos. A carne, essa, fica reservada aos dias de festa.

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