“Morre o homem, fica a obra” – o adágio é profundamente conhecido. Apesar de, em “Nós Matámos o Cão Tinhoso”, mais do que perpetuar a obra e o autor no tempo, o Teatro M’Beu recorre a um discurso antigo para solver as carências sociais actuais: o estigma e a discriminação da pessoa afectada pela SIDA.
A discriminação e o estigma a que a pessoa portadora do vírus do SIDA se vê votada pelos próximos e pela sociedade equipara-se ao tratamento que se dá a “um cão tinhoso”.
Assim, pela necessidade cada vez mais urgente de intervenção social, não só no combate e prevenção, mas acima de tudo de solidariedade para com as vítimas deste mal, o Teatro M`Beu recuperou a obra “Nós Matámos o Cão Tinhoso ”, conto da autoria do escritor moçambicano Luís Bernardo Honwana.
Durante quatro meses, no trabalho de pesquisa que essencialmente se destinara ao alcance do grau de mestrado em Drama, Evaristo Abreu combinou alguns elementos de dança contemporânea e tradicional – Mapiko –, para produzir uma obra que só não satisfaz totalmente a categoria de Playback Theatre, pura e simplesmente porque a história é contada e representada pelos actores.
Na intriga da peça interagem cinco actores, nomeadamente Isabel Jorge, Elliot Alex, Sílvia Mendes, Dawa Mafunga e Ademar Chaúque. Destes, Sílvia Mendes, que faz o papel de Isaura, – uma seropositiva – mostra que a sua história é uma analogia aos dramas de um portador de HIV.
“Eu sou seropositiva. E a minha história é muito parecida com a história do cão tinhoso. E como esta já está escrita, então eu prefiro contá-la. Não há muita diferença”, começa por dizer.
Para a actriz, a Isaura e a sua história de cidadã seropositiva, muito se assemelha à de um cão tinhoso, porquanto, “o cão tinha uma pele velha, cheia de cicatrizes e muitas feridas”, como acontece com os seropositivos em estado acelerado. Pior ainda é que “ninguém gostava dele”. Ou seja, o tinhoso era discriminado e “ninguém gostava de lhe fazer carícias como aos outros cães”.
A dor da ansiedade
Entretanto, diante da discriminação social, o estigma e os rótulos negativos que se colam ao tinhoso tornavam a sua existência quase insignificante. Os indicadores da sua morte lenta mas progressiva tornavam-se manifestos a todos, agudizando o seu sofrimento. É como conta Isaura, “o cão tinhoso passava o tempo a dormir, mas, às vezes, andava com os ossos todos à mostra do seu corpo magro”.
Mais triste ainda é que no meio em que se encontrava o cão tinhoso, ninguém conseguia descodificar o apelo por um pouco de altruísmo e solidariedade que continuamente ele fazia.
Na verdade, para Elliot Alex, as diferenças entre o cão tinhoso e os portadores de SIDA são mínimas. Afinal, “os olhos dela – da Isaura – eram tão grandes, mas não eram azuis como os do cão tinhoso. E olhavam para qualquer pessoa, a pedir qualquer coisa, mas sem dizer nada”.
Pior que a indiferença
Na peça, certas acções perpetradas contra os seropositivos superam os limites da maldade. É que, apesar de tinhoso, o cão não perdeu o gosto de frequentar locais sociais, como outros cães, ou seja, homens.
“Eu estava a olhar para o senhor administrador quando ele e o seu assistente levaram o capote. Ele olhou para mim e olhou para o cão, sem saber com o qual ia correr primeiro. Enquanto ele pensava para resolver isso, o senhor administrador cuspiu para nós os dois. Está-se mesmo a ver que o cuspo, tanto era para mim como para o cão tinhoso”, comenta em cena Isabel Jorge profundamente ofendida.
Jurado de morte
Na peça o cão é literalmente jurado de morte. “O senhor administrador mandou-me dar cabo de um cão que anda por aí na vila a meter nojo aos que o viam”. Aliás, “eu já devia ter dado cabo do cão há muito tempo, mas somente agora é que tive ordens”.
De qualquer modo, por analogia como fazem os actores, a cada instante que se poupa a solidariedade aos necessitados – no caso a pessoa portadora do vírus da SIDA – a cada instante que se pensa que este grupo social “é um perigo para a sociedade” obramos uma cena de morte sem “muitos alaridos”, como acontece com os cães. E, por consequência, reduzimos a vida dos homens à existência de “um cão tinhoso”.
Entretanto, para finalizar, os actores convidam o público para uma reflexão não menos importante: se o olhar intenso do cão tinhoso não somente clamava “para lhe tratarem as feridas; para lhe darem comida ou para lhe fazerem uma casinha” quanto mais o olhar da pessoa padecendo de SIDA?
Exibida na semana passada no Teatro Avenida, a peça “Nós Matámos o Cão Tinhoso” será levada a palco, neste fim-de-semana, no Centro Cultural Franco-Moçambicano, em Maputo.