Dá pena a galinha. Aqueles olhos frouxos, as plumas sofridas, a alma magra, o bico abati do, anormalmente curvado para baixo. Tem uma expressão muito triste. Nunca na vida foi feliz.
A sua mãe foi poedeira. Humilhante condição. É um insulto para os galináceos chamar-lhes “filhos de uma p…oedeira”. Uma poedeira tem o aparelho reprodutor em constante uso. Ninguém gostaria de ter uma mãe muito quilometrada no aparelho reprodutor.
Cuspida para o mundo, os seus primeiros dias foram no escuro cavernoso de um ovo. A mãe, em constante trabalho de parto, não ti nha condições para chocar os ovos em que encasulava os filhos. O ovo que a gerou foi chocado artificialmente, no calor frio duma incubadora. Nunca sentiu o calor da mãe. Nunca conheceu a mãe. Coitada.
Rompeu a membrana quebradiça e descascou-se do ovo para o ansiado encontro com o mundo, mas enganou-se pensando que encontraria calor familiar e uma mãe para orientá-la para a vida. A mãe estava na vida. A galinha não teve família. Passou os primeiros dias na sombria reclusão do aviário, ao lado de outros pintos sem mãe. O aviário é um orfanato. Os orfanatos são lugares escuros, frios e cinzentos.
Nunca teve espaço para brincar na infância, apinhada aos outros, naquele campo de concentração de pintainhos piando ensurdecedoramente. Por vezes a porta abria-se bruscamente, um carrasco arrastando enormes botas fazia-se ao tapete de pintainhos, pontapeando-os para não pisá-los, algumas vezes esmagando-os.
Um dia o carrasco escolheu-a entre as maiores e ensardinhou-a numa daquelas caixas com muitos buracos, em que se transportam os pintos, e foi vendida para um criador. Levada para uma capoeira, ao ar livre, vedada por uma rede, com centenas de outras. Era um enorme campo de reeducação. Ali ia crescer e engordar à pão e água, quero dizer, ração e água, para ser revendida. Vivia com galinhas mais velhas. Com elas disputava espaços e alimentos. Recebia bicadas e pontapés. Não adiantava piar.
Viu galinhas adolescentes como ela escravizadas sexualmente para sati sfazer os galos. Viu outras, igualmente mal crescidas, serem seleccionadas para a venda ou abati das para lhes traficarem os órgãos. Escapou à rede de prosti tuição que faria dela poedeira. Um dia foi vendida, com outras ensardinhadas numa gaiola, quantas mais lá couberam, e levadas para a venda.
A gaiola era de rede com malha muito fi na, daquelas em que se expõem galinhas nos bazares. Foi ati rada às pressas para uma camioneta, amontoada sobre outras. Presas, as galinhas não puderam amortecer o baque porque o espaço entre elas não dava para abrir as asas. A camioneta era velha, sacudia-se e fumegava. A estrada era esburacada. A galinha viajou em silêncio, com fome e sede, ao sol, vento e poeira. O veículo freava e acelerava, as gaiolas esbarravam umas noutras, “có có có có”, protestavam as galinhas.
Chegou, a camioneta cansada, ao bazar cansado. Descarregando, o carregador arremessou as gaiolas e “có có có có”, é como elas dizem “ai”. Mais três dias ao sol, vento e poeira, no desconforto da gaiola, na montra do bazar. Não há “Direitos Humanos” de galinhas. Apertadas, a rede da gaiola magoava. Cansada, quase a desmaiar, percebeu a gaiola a abrir-se.
Uma mão brusca segurou-lhe as asas de plumas sofridas, atou-lhe as patas, e a troco de dinheiro entregou-lhe a outro homem. Viajou baloiçando ao ritmo dos passos do novo dono, que lhe segurava pelas patas. Pendurada de cabeça para baixo, enjoou-se, quase vomitou mas não se vomita sem nada no estômago. Ao sol, tonturas, fome, sede, enjoo, e as patas atadas, foi largada num canto do quintal, socorreu-se das asas que nunca aprendera a usar para atenuar a violência da queda.
– Compraste galinha? – Perguntou a dona de casa, enquanto conferia os trocos.
– Sim, senhora! – Respondeu o serviçal que lhe trouxera do mercado.
A dona de casa aproximou-se, segurou-a com as mãos dóceis, maternal. Desatou as patas e afagou-lhe as feridas que as cordas causaram. Levou-a nos braços e pousou-a no tampo da cozinha, onde aproveitou para beber restos de água que ali havia.
Aliviada, finalmente descansou. Encostou a cabeça ao braço carnudo da senhora. Nunca antes a galinha senti ra a doçura dum colo. Pela primeira vez sorriu, sem perceber que ia ser degolada.