A tecnologia ao serviço da medicina já leva o médico a quase todos os órgãos do corpo humano. Mas é para o tubo digestivo que existe o veículo mais avançado. Se pudéssemos ir à boleia, seria uma viagem inesquecível.
Pensemos que vamos viajar pelo interior do corpo humano, como já se viu em filmes e na banda desenhada. Imaginemos que apanhamos boleia de algum dos instrumentos à disposição da medicina neste século… a viagem tem de ser feita em várias etapas, com mudança de transporte, mas o passeio vale a pena: a tecnologia actual permite observar quase todo o organismo, do nariz ao recto, e demorar o tempo que se queira, como se visitássemos uma cidade em plena ‘pulsação’ nocturna.
Falamos em imaginação porque ainda não foi inventada uma máquina como a do filme “Querida, Encolhi os Miúdos”, mas os veículos aos quais poderíamos pedir boleia já existem. Se quisermos ver a maioria dos órgãos temos de ir de endoscópio, se pretendermos andar apenas pelo tubo digestivo, ‘apanhemos uma cápsula’. Esta é o melhor veículo, desde que se queira apenas observar… Mas passemos à realidade.
Desenvolvida em Israel e chegada à Europa em 2010, a Pill Cam Cólon 2 é um instrumento ímpar na medicina. Parece um simples comprimido. E engole-se, só que não se desfaz no estômago. Cumprida a missão de vasculhar o intestino grosso, de efectuar, portanto, uma colonoscopia, sai do organismo intacta, pronta a deitar ao lixo ou a guardar como recordação.
A cápsula está equipada com um emissor, uma bateria e duas câmaras de vídeo com flash, cujas lentes proporcionam uma panorâmica alargada, quase circunferencial. Captam entre quatro e 35 imagens por segundo, e funcionam conforme a velocidade: se vai devagar, as máquinas fazem o mínimo de imagens, se segue mais depressa atingem o máximo. Tem uma defi nição invejável, a cores, permitindo ao gastrenterologista ver no ecrã de computador ou numa televisão, com todo o conforto e repetidas vezes, o filme que se poderia chamar “As Entranhas”…
Desde há dez anos que era possível assistir à primeira parte desta película. Voltando às boleias imaginárias, em 2001 já podíamos andar de cápsula – num mundo essencialmente cor-de-rosa com nuances alaranjadas, avermelhadas, claras e escuras – usar a língua como rampa de lançamento, dizer adeus ao céu-da-boca, fazer a vertiginosa descida do esófago, ver o borbulhar e algumas paredes do estômago, e percorrer o tubo estreito, bastante pregueado, mas sem obstáculos ao longo dos seus quase sete metros de comprimento, e a que é dado o nome de intestino delgado.
A cápsula para enteroscopia tem uma aparência semelhante à do cólon, mas, tecnologicamente falando, é muito mais limitada. As fotos eram também emitidas para um gravador que o doente, depois de engolir a cápsula, levava consigo e devolvia ao fi m do dia. “Dava- -nos o gravador e íamos ver as imagens num computador.
Para o intestino delgado, servia. Mas, logo se pôs um problema: tenho ali uma lesão e não sei bem o que é, preciso de um bocadinho, preciso de fazer uma biopsia, ou tenho de tratá-la. Como?”, explica o professor Carlos Nobre Leitão, director clínico do Hospital dos Lusíadas, o único em Portugal onde se pode fazer uma colonoscopia com o “último grito” das cápsulas.
A necessidade de recolha de amostras e tratamento de lesões fez surgir um outro veículo. Inventou-se um tubo bastante comprido, com uma câmara na ponta, que, introduzido pela boca, consegue, forçando- -se a sua deslocação, percorrer praticamente todo o intestino delgado. Para se viajar, seria o mesmo que uma longa descida num escorrega aquático, um risco, já que a saída não tem protecção.
É por este canal que se fazem deslizar micropinças e tesouras, ou se ministram remédios. Mas, no plano médico, o endoscópio foi uma evolução digna de nota. Como diz o gastrenterologista, é um processo “muito pesado, muito difícil. O doente está quatro ou cinco horas anestesiado e o médico a tentar ver. Um exame usado apenas para resolver um problema que a cápsula põe ao de cima”.
É, segundo o vocabulário da medicina, demasiado evasiva. E falha num ponto vital. Não mostra o intestino grosso, onde existem as doenças mais graves. Inventou-se, por isso, a cápsula para colonoscopia. E, no final de 2009, foi apresentada num encontro internacional a segunda geração.
A Cólon 2 veio resolver um problema provocado pelo estômago. Dantes, o filme “As Entranhas”, que actualmente não ultrapassa as quatro horas de exibição, tornava-se maçador, sem qualquer interesse, dando imagens repetitivas do estômago, e descarregando a bateria em vão.
Agora, a cápsula quando chega ao local onde os alimentos entram em digestão, e onde pode ficar retida algumas horas, como que adormece, reanimando-se apenas ao entrar no intestino delgado, não parando de filmar até sair pelo recto. Se houver por ali algum pólipo, provavelmente não lhe escapará, a sua sensibilidade atinge os 89 porcento.
“O cancro do cólon é o problema oncológico número um do mundo. É o mais frequente, o que mais mata, e é o único susceptível de ser prevenido, no verdadeiro sentido da palavra que é evitar que aconteça. Não é possível impedir o aparecimento de mais nenhum cancro. O rastreio tomou-se uma preocupação do mundo mais desenvolvido, que é onde existe a doença”, refere Nobre Leitão.
Os EUA, com Bill Clinton na presidência, foram o primeiro país a adoptar o rastreio para todos os cidadãos com mais de 50 anos. O resultado, salienta o especialista português, foi “uma queda brutal” do cancro do cólon e recto. A Alemanha seguiu as pisadas de uma forma disciplinada. Em 2004 começou a rastrear toda a população, no ano passado registou menos 156 mil doentes cancerígenos.
E reflecte Nobre Leitão: “Se pensarmos que o tratamento de um doente custa para cima de 500 mil euros, além dos dias de baixa, das reformas precoces, das mortes… percebemos que o rastreio está mais do que pago. E o Estado alemão só o aprovou porque faz contas, não é porque seja mais amigo dos cidadãos do que o nosso. É mais inteligente, por isso é mais rico.
“O rastreio do cólon está na ordem do dia, mas tem um problema – faz-se pelo método invasivo, com o endoscópio, ou seja, a colonoscopia obriga à introdução de um tubo pelo ânus até ao fim do intestino grosso e os examinados têm de estar sedados. Como diz Nobre Leitão, “tem algum risco, as pessoas têm medo. Há algum mistério à volta disto, mas fazem-se intensas endoscopias. Embora se façam em condições de bastante segurança e conforto, há sempre riscos de perfurações”.
Em 100 pessoas sujeitas a exame prévio, 84 ou 85 não têm nada, 15 porcento terão um pólipo ou dois, “então aí, vamos tirar”. “Mas os restantes escusam de fazer a colonoscopia. É esta a filosofia que está subjacente, a concepção e o desenvolvimento da cápsula. O problema tem ver com os custos fi nanceiros. Uma Pill Cam (não há outra marca) custa, em média, aos hospitais, 900 euros e quase o dobro à pessoa que a solicite. Se fosse mesmo para viajar não era caro…