Levou-nos cerca de trinta minutos a travessia de barco a motor entre Tanganhangue e a Ilha Bem Organizada, assim baptizada pelos portugueses quando se depararam com os cento e trinta e um poços de água que distinguiam aquela das restantes ilhas desidratadas.
À chegada, o Ibo lembra a Ilha de Moçambique, que esconde ruas, praças e um casario colonial grandioso, mas nem por isso logo revelado no momento do desembarque na praia. Localizada no Arquipélago das Quirimbas, a ilha do Ibo estende-se ao longo de dez quilómetros pela costa da província de Cabo Delgado, com uma largura de cerca de cinco quilómetros e, pelo que foi, pelo que é e pelo que projecta vir a ser no futuro, parece fiel depositária de uma história, que merece ser contada.
“Antes dos brancos portugueses, estávamos os mistos e mistas, pretos e pretas naturais da grande ilha do Ibo”, começa a contar-nos o senhor João Baptista, “historiador e conselheiro da Ilha do Ibo”, como o apresenta a placa pendurada no alpendre de sua casa. “Os árabes são os primeiros a entrar nesta ilha do Ibo e Quirimba, onde compravam escravos que, na Fortaleza de São João Baptista do Ibo, aguardavam o embarque para a América do Sul”, diznos o mais privilegiado dos moçambicanos da ilha do Ibo era o único preto entre brancos que frequentava a Escola Primária do Ibo, em tempos coloniais. Com 81 anos já bem franzinos, de olhos azuis tão cansados de óculos quanto carregados de vida, o historiador sentase na sua cadeira de madeira indiana, escura e pesada, de braços longos que pedem pernas esticadas, usa um boné branco que promove em dizeres o turismo de Moçambique e, na lapela, orgulha-o um alfi nete com uma bonequinha de pano, “Foi a Embaixadora de Espanha que me deu quando cá veio. Nunca mais a tirei”.
Do interior de uma pasta de plástico tira onde lhe dedicaram algumas linhas ou reportagens inteiras. Por fi m, abre o seu caderno escolar de capa amarela e exibe os manuscritos, que, explica-nos, copia pacientemente e quantas vezes forem precisas, com o único objectivo de distribuir pelos turistas que por ali passem.
“Cavavam o chão da Fortaleza e encontravam libras de ouro, estes árabes que fugiram quando os holandeses invadiram a ilha”, vai soltando o senhor João Baptista, de cabeça mergulhada em papéis, enquanto procura o manuscrito certo para nos ler e, claro, depois oferecer. Encontrada a cábula, lê-nos a história que reza escrita nos seus apontamentos: “Do ano 1500 a 1817, as populações da Ilha e das regiões adjacentes, resistiram heroicamente aos ataques dos Holandeses e dos sacalaves, de Madagáscar. Muitas povoações e infra-estruturas foram incendiadas e alguns habitantes foram aprisionados e levados pelos invasores.” E continua “O período entre 1881 e 1883 também foi de grande afl ição e terror. Os habitantes do Ibo sofreram neste período sucessivos ataques e assaltos dos mapistas, povos de característica Zulu, provenientes da região do Niassa.
Cabo Delgado, em 1929 a ilha do Ibo perdeu defi nitivamente o seu estatuto político para Porto Amélia, actual cidade de Pemba.” Durante vários séculos, a Ilha do Ibo foi um interposto comercial importante na rota das especiarias e do comércio de escravos. Os principais produtos provenientes do Ibo eram o sabão, o fósforo e o óleo alimentar. Dada a sua localização geográfi ca, antes da época colonial, o Ibo sofreu também infl uências hindus. No norte da vila do Ibo, o cemitério Hindu, construído em 1905, prolongou a tradição da cremação dos mortos em forno de paus e manteve o ritual de atirar as cinzas ao mar. Mas, a tradição já não é o que era e hoje nem só a tradição hindu parece adormecida na ilha do Ibo. Há mesmo quem lhe chame a ilha da Cidade Adormecida. Abandonada por um número signifi – cativo de habitantes, só recentemente retomou o crescimento populacional.
Adormecidas as suas infra-estruturas, parados no tempo os seus serviços, a cidade parece conservar a degradação para fantasiar a realidade de outrora aos olhos dos turistas.
No Ibo, uma ilha que passou oficialmente dos Portugueses para os Moçambicanos, mas que na lei dos costumes parece nunca ter deixado as mãos árabes, contam-se dez mesquitas e apenas uma igreja, esta sem padre. “É o Senhor Alexandre, pessoa de estudos, quem dá a missa às 8h da manhã, todos os domingos”, diz o Ali, empregado do Ibo Lodge e nosso guia por duas horas e meia entre ruas de nomes vetustos tão familiares como Almirante Reis, República ou D. Maria Pia. Ali, como a maioria da população do Ibo, é muçulmano. Hoje percebe-se que, não só a religião, mas também a lei do comércio continua a ser árabe.
Os primeiros a serem comercializados pelos árabes foram os escravos. A população local vendia os mais novos, de boa saúde, para ganhar uns trocos à conta dos árabes, que, por sua vez, os exportavam para o outro lado do mundo a eles e às suas danças, hoje bem reconhecíveis na capoeira e no samba brasileiros.
Apesar da presença portuguesa na Quirimba e no Ibo, uma presença que atacou a cultura árabe instalada, a verdade é que hoje tudo o que a ilha tem para oferecer, tudo o que sobrevive sem cara de ruína, não é português, é árabe. Em época de Ramadão, a cidade é uma cidade fantasma, onde ninguém passeia nas ruas, ninguém faz barulho, ninguém cozinha sequer. A dedicação ao jejum islâmico contrasta com o desprezo pela arquitectura colonial portuguesa, que, a cair aos bocados, implora restauro, mendiga reabilitação.
Hoje, a capital antecessora de Pemba acumula na capela da Fortaleza de S. João Baptista os vestígios que a documentam. Resmas de papéis, ofícios e registos da Administração, formulários e listas de hospitais, um amontoado de história encostado à parede, arquivado em armários de prateleiras podres que servem de apoio aos ratos, roedores do passado. Uma biblioteca colonial que o senhor João Baptista ajudou a salvar da fogueira em que os revolucionários a quiseram deitar. Biblioteca da qual, largada em terra de ninguém, ninguém cuida. Sem preocupações históricas ou quaisquer outras mais importantes, os habitantes do Ibo dedicam-se à sua subsistência, garantida, sobretudo, pela pesca e pela agricultura, começando agora também a ser complementada com a incipiente, mas promissora, actividade turística.
O centro urbano da ilha divide-se em três zonas: o bairro de cimento, em avançado estado de deterioração, zona histórica outrora ocupada pelos colonos e, consequentemente, onde se encontram concentrados os edifícios e monumentos coloniais; os bairros de Cumuamba e Rituto, onde tem lugar a vida quotidiana e a actividade produtiva da maior parte da população local; e uma área de expansão espontânea, que não possui qualquer estrutura de ordenação ou acesso defi nida.
A precaridade de condições em que viviam e vivem os actuais 9.509 habitantes do Ibo justifi caram, e continuam a justifi car, o arranque e desenvolvimento de um projecto que, desde há cerca de cinco anos, se dedica, exclusivamente, ao combate das necessidades básicas e à tentativa de melhoria das condições de vida da população da ilha.
“O nosso objectivo é impulsionar o desenvolvimento económico e social da Ilha do Ibo”. Assim se apresenta o projecto da Fundación Ibo, uma instituição espanhola sedeada em Barcelona e que desenvolve, desde 2003, o seu projecto em Moçambique. O projecto da Fundação Ibo nasceu de uma viagem da sua equipa promotora a Moçambique em 2002. Durante esta os seus fundadores foram testemunhas das condições em que vivem milhões de habitantes e o conhecimento de índices como o da esperança de vida a rondar os 45 anos para os homens e os 49 anos para as mulheres ou o da taxa de analfabetização chegar aos 53,5%, fi zeram com que, desde então, assumissem um compromisso com o processo de desenvolvimento económico e social moçambicano.
A equipa começou por participar no financiamento de projectos promovidos por outras fundações em Moçambique. Posteriormente, desenvolveu projectos próprios em matéria de sanidade, educação e sectores económicos locais. E, fi nalmente, instituiu a sua própria Fundação, estrutura em que sediou a gestão do projecto Ibo, lançado e desenvolvido em colaboração com a população local, com o governo estatal e respectivas delegações locais, com entidades supranacionais (como a ONU, o Banco Mundial e a UE), com fundações e entidades sem fim lucrativo e mesmo com quaisquer empresas privadas que se mostrem interessadas em colaborar.
Para alcançar o seu objectivo, a estratégia da Fundação Ibo assenta em três pilares fundamentais: a maximização dos recursos da ilha; a integração da população local no projecto; a gestão responsável de recursos naturais – e, na prática, distribui os seus investimentos por quatro áreas distintas: turismo, desenvolvimento social e infra-estruturas básicas, sectores económicos tradicionais e património histórico-cultural.
Assim, não se trata apenas de procurar satisfazer as necessidades básicas de sanidade, educação e infra-estruturas, mas também de reabilitar o património histórico, ordenar territorialmente a ilha, restaurá la e valorizar o seu conjunto artístico, sem, contudo, desvirtuar a estrutura urbana e arquitectónica original.
Do sucesso deste empenho são já são bons exemplos a “Mercearia Dirce”, a “Carpintaria Escola”, a antiga Escola Afonso de Albuquerque ou a Igreja de São João, recuperadas ao abrigo do Plano de Desenvolvimento da Ilha do Ibo, assinado pelo Governador de Cabo Delgado e a Fundação Ibo, em Outubro de 2004. Em fase de projecto encontra-se ainda um complexo turístico, que se pretende “artisticamente” integrado na ilha e construído com respeito pela sua paisagem e arquitectura bio climática. A programação futura prevê ainda o acondicionamento de poços, a instalação de um sistema de tratamento e armazenagem de água, a recuperacão dos sistemas de aproveitamento de águas pluviais, a instalação de um sistema de geração, acumulação e distribuição sustentável de energia, o tratamento de resíduos através da construção e desenvolvimento de um sistema de prevenção, colecção e rejeição de afluentes e ainda a construção de uma nova escola.
Quem acompanha atentamente o trabalho já feito e, com prazer, continua a assistir aos esforços que a população tem feito para aproveitar todo o investimento que nela tem sido depositado por instituições como a Fundação Ibo é o senhor João Baptista que, nascido a 23 de Junho de 1927 (um dia antes do dia do Ibo e dia do Santo com o seu nome), espera que os espanhóis saibam ajudar a sua querida ilha.