Era sábado, um sábado diferente. Poderia ter sido um sábado igual aos outros, em que o sol desperta ligeiramente mais tarde, naquela quase preguiça informal dos finais de semana, e percorre o céu, do nascente ao poente, de chinelos e calções, com um brilho despreocupado, e sem o fulgor crestante dos dias de semana.
O sol daquele sábado despertou com alguma ansiedade, tal como a dona Amélia. Uma ansiedade miúda e conti da precipitou-a para a vigília muito antes do sol, porque era sábado de xitique.
Quando a corneta enrouquecida do galo, seu despertador natural, se fez ouvir, já ela se fazia às tarefas domésti cas com a aquela agilidade que se lhe conhece, cantando de forma muda, melodias tradicionais de embalar almas, aquelas que são cantadas nos cultos religiosos, cerimónias fúnebres, casamentos, ou outras situações em que se pretender sentir Deus mais próximo. A animação com que cantava deixava perceber o estado de missão em que se encontrava, acordara com o espírito de xiti que.
Com um pano húmido lambeu o chão de cimento queimado à colher dos poucos cómodos da casa como se limpasse a pobreza, penteou o areal do quintal com uma vassoura de palha como se varrese as tristezas e despachou a roupa de três bacias, mais acarinhando os panos que esfregando. Arrumou, limpou, lavou e lavou-se ao mesmo tempo que cozinhava.
Enquanto se ajeitava na saia nova e separava o dinheiro para comprar os produtos da banca amanhã, apercebe-se de que os clientes da banca de hortaliças que lhe garantem o rendimento iriam ter saudades dela, porque este sábado não iria lá vender. Era dia de xitique!
O dinheiro para as compras da banca guardou-o no suti ã massacrado pelos seios calejados de amamentar seis crianças e um marido. Outra parte introduziu nas profundezas abissais das partes indizíveis de tão ínti mas, era um cofre para protegê-lo do alcóolatra do marido.
O dinheiro do xitique amarrou na ponta da capulana, cofre seguro, protegendo-o dos ninjas, nome que se dá aos carteiristas. A capulana era nova, do mesmo tecido que o lenço que desenhava nela uma auréola invulgar, e cheirava a naftalina.
A solenidade da situação exigia uma capulana nova. Quando os filhos acordaram já ela se tinha ensardinhando num chapa e desaparecido estrada fora a caminho do xiti que, no xipamanine, onde as amigas, e as colegas de negócio informal a esperavam.
Algum pessoal já se ti nha agrupado quando ela chegou. Já conversavam formalmente sentados em pose de princípio de festa, aquela timidez de antes dos comeres e beberes, no pátio da casa da beneficiário do xitique.
O quintal não era grande mas todos couberam. Quando as pessoas começaram a dançar era preciso arremessar salpicos de água para amainar a fúria impertinente da poeira.
Comeu-se um buffet discreto com pratos nacionais a dominar o cardápio. Bebeu-se o que havia, água, refrescos e vinhos, bebidas de pacote, mais económicos para o bolso e dispendiosos para a saúde. Antes de se comer cantava-se sem muito ânimo.
Depois, de barriga cheia, veio a energia para a dança. Ficou bonito ver a coreografi a das senhoras de capulanas e lenços idênti cos, uniforme do xiti que, a bambolearem as ádipes com movimentos festi vos.
Quando chegou aquela parte em que cada um entrega o valor e o dinheiro recolhido é entregue formalmente ao benefi ciário do xitique, a animação chegou a rubro, os cânti cos tornaram-se mais indisciplinados e as danças mais eróti cas.
Dona Amélia até se esqueceu das tristezas com tanta animação e dançou muito. Voltou feliz para casa, ainda a ouvir o eco dos ukulunguana, aquele grito agudo com que se manifesta animação, em cerimónias deste tipo.
Xitique é assim mesmo, uma festa, feita por um grupo de pessoas do mesmo meio social, celebrando a vida e esquecendo as pobezas e tristezas. Ali faz-se uma poupança conjunta distribuída segundo um sistema rotati vo, a fim de que cada um, à sua vez, benefi cie do dinheiro.
É uma espécie de conta poupança informal muito animada. É um crédito bancário sem a violência dos juros. É um banco em que os débitos são comemorados e não tem a chati ce, a burocracia, as longas filas, nem a indisposição de balconistas.