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‘@verdade da mulher – O mesmo caminho

Quando acordo de manhã e faço um café com leite, sento-me na cozinha a conversar em silêncio com o Chico. Às vezes é ele que me acorda, num trinar tímido, como eu, e levanto-me antes da hora para ver a luz que escasseia na cozinha por causa do saguão. O Chico não olha para mim, mas vê-me de certeza, porque os animais vêm tudo sem precisarem de olhar e do alto do seu poleiro entoa um bom dia que me enche os ouvidos. Depois, para acordar melhor, entre a primeira e a segunda torrada, vou à sala pôr uma música e bebo o leite com café, saboreando as torradas barradas a manteiga e a queijo fundido La Vache Qui Rit e dá-me vontade de rir, eu que durante tantos anos me esqueci do que era rir, viver, estar, fruir, sem o aperto de uma presença agitada e confusa ao meu lado.

Dantes, era tudo diferente. Ela acordava mal disposta – estava sempre mal disposta – e olhava-me à transparência como se eu não estivesse ali, mas quem não estava era ela, demorei quase três anos a perceber isso. Quando um coração se fecha faz muito mais barulho do que uma porta, diz o António Lobo Antunes, que também diz que só consegue estar em paz consigo próprio quando vive em guerra com os outros. Ela era assim, sempre à procura do pior em mim e nos outros, sempre a mostrar o pior de si mesma, numa tentativa desajeitada de se descobrir e exorcizar.

E sempre ela, ela, ela, à frente e antes de todos, como se um casamento não fosse construído a dois, como se eu tivesse sempre a culpa, como se nada pudesse ser bom. Por isso, quando me separei e vim para Lisboa, comprei esta casa tranquila junto ao jardim de Santo Amaro, onde os pássaros não tremem à passagem dos autocarros e os velhos jogam à bisca, onde as crianças aprendem os nomes das árvore e eu aprendi que é muito melhor estar sozinho do que sentir-me só, que o sol que lava as janelas também é meu, que o sossego e a paz não têm preço. Não sei se isto é ser feliz, porque me falta uma metade, outra mulher, mais madura e segura, outra coisa diferente que nunca tive, mas que o desejo faz adivinhar e o corpo vai sonhando no recolhimento das noites do fim do Verão.

Mas um dia destes, quando sair de manhã para ir trabalhar, depois de conversar com o Chico e saborear o leite com café e a torrada barrada a manteiga e queijo, pode ser que tropece nela, ou ela tropece em mim, porque são as mulheres que escolhem os homens, sempre assim foi e sempre há-de ser e eu estou mesmo pronto para ser escolhido. E no dia em que a encontrar, ponho o mesa e estico os lençóis da cama, abro uma garrafa de tinto e brindo à vida com ela. Porque entre uma noite e uma vida há um mistério a construir, e pode ser que a viagem que os nossos corações precisem trilhe o mesmo e único caminho.

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