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Nhongonhane: As grutas da morte

Nhongonhane: As grutas da morte

Sacos no chão, enxadas de cabo curto por todo o lado, vidas soterradas, muitas crateras no ventre da terra esventrada por homens, mulheres e crianças que lutam para sobreviver, mães jovens com filhos nas costas e um saco de areia na cabeça…Eis a fotografia de Nhongonhane, posto administrativo que pode desaparecer da geografia do distrito de Marracuene.

No último sábado, nas colinas de Nhongonhane, no distrito de Marracuene, a pouco menos de 50 quilómetros a norte da cidade de Maputo, @Verdade foi testemunha da dura realidade vivida por uma parte da população local que, dia após dia, arrisca a própria vida em busca de soluções imediatas para as necessidades do quotidiano, num trabalho clandestino e perigoso que decorre nas designadas “grutas da morte”, dados os constantes desmoronamentos de terra que geralmente ceifam vidas humanas.

Situado nas proximidades da linha férrea que liga a capital aos diversos pontos da zona sul do país, particularmente os distritos da Manhiça e Chicualacuala em Maputo e Gaza, respectivamente, Nhongonhane possui 16 740 habitantes divididos em dez bairros, quatro dos quais sobrevivem do ‘chorudo’ mas mortífero negócio da areia.

Chorudo, no entender dos nativos, porque garante o sustento de muitas famílias. Mortífero porque a terra, qual cemitério, abriga no seu ventre muitos corpos que ficaram ali soterrados. O posto administrativo, refira-se, é considerado o celeiro do distrito, dada a fertilidade dos seus solos, situados nas belas planícies que se estendem ao longo das margens do rio Incomati. Uma fertilidade que devia empurrar o grosso dos habitantes para o cultivo da terra.

As grutas da morte

As duas estradas, ou seja, as picadas em becos que dão acesso às grutas não são mais do que caminhos sinuosos e difíceis de transitar pela complexidade que as caracterizam. No local, as ladeiras da montanha, a principal fonte dessa areia que alimenta milhares de estômagos espalhados um pouco por todo o país e além- fronteiras, encontram­se despidas de vegetação e estão em erosão progressiva como consequência das escavações desenfreadas. Desde o princípio, época em que começaram a surgir as primeiras explorações, na década de ‘90 do século passado até aos nossos dias, muitos foram engolidos pelas crateras. Pelos cálculos de Sebastião Mulau, chefe daquele posto administrativo, pouco menos de trinta pessoas pereceram no local.

Por outro lado, embora indicando cifras diferentes, os depoimentos de outras pessoas aproximam os dados avançados pelo chefe do posto. As mortes mais recentes datam de há três anos e envolveram duas pessoas, nomeadamente pai e filho. Muitas vezes, os corpos das vítimas acabam soterrados e não são recuperados, em consequência das dificuldades que o processo de recuperação das buscas acarreta. “Quando alguém morre soterrado o corpo desaparece para sempre. Cá entre nós apenas fazemos uma cerimónia, deitamos flores no local e pronto”, explicou um residente que sobrevive do negócio. O último desabamento, contam, aconteceu em Março deste ano e provocou ferimentos graves e ligeiros às pessoas que se encontravam nas redondezas e no interior das grutas.

Muitas vezes, os indivíduos correm grande risco porque trabalham em péssimas condições, sem protecção, usando meios precários como enxadas de cabo curto e, algumas vezes, operam à noite e em estado de embriaguez e sob auxílio de velas. Apesar disso, as pessoas não temem os riscos que correm e defendem que não há medo quando a fome aperta. “Estamos conscientes das consequências dramáticas que isto nos pode causar, mas vamos continuar a exercer a actividade. Temos famílias por sustentar”, afirmam.

É um caso de vida ou morte

Dizer que o espaço é um triângulo de morte é como que repetir um lugar-comum. Entretanto, o que mais causa espanto é a dedicação com que homens, mulheres e crianças acorrem ao sítio à procura de sustento levando um modo de vida primitivo, o qual produz quantias monetárias ínfimas que são prontamente canalizadas para a solução de pequenos problemas, particularmente os mais pontuais.

Pelos depoimentos que fomos colhendo, ficámos a saber que nem todos se fazem diariamente ao local. Roger Fabião e o seu amigo conhecido naqueles meandros pela alcunha de Gasta Tinta Mahala têm mais ou menos 35 e 45 anos, respectivamente. Ambos estão desempregados. Exploram a gruta há um ano, e têm esposa e três filhos cada um. É, das grutas que retiram o pão de cada dia, por isso passam a vida no local. Desde que amanhece, das 7 horas até ao final do dia, estão metidos nas grutas numa espécie de luta pela sobrevivência quando, na verdade, encomendam a própria morte.

“É proibido extrair esta areia porque muita gente morre nestas grutas”, afirmam. Através destes homens ficámos a saber que a maior parte da população activa de Nhongonhane sobrevive do trabalho arriscado das grutas. Há pessoas que abandonam as crateras e vão tentar a sorte na vizinha África do Sul, mas quando as coisas não correm de feição por lá, regressam ao sítio onde, segundo eles, há sempre espaço pois a fonte é uma dádiva da natureza. Há pouco tempo, com vista a pôr fim àquela actividade e prevenir as populações dos constantes riscos de morte, o governo distrital de Marracuene desenvolveu algumas campanhas de sensibilização. Nessas actividades, além de conselhos, as populações receberam promessas de empréstimos para dar corpo às suas actividades de rendimento, no âmbito do projecto do Fundo de Iniciativas Locais. Todavia, tudo indica que as coisas não deram certo.

Como prova disso, as populações continuam a explorar o areeiro a um nível acelerado. Alguns especialistas opinam que num futuro próximo a zona pode vir a sofrer graves danos ambientais. No entender de Gasta Tinta Mahala e o seu companheiro de trincheira, os planos do governo não surtiram efeito, primeiro, porque as palavras não chegaram a ser materializadas, segundo, porque as forças de segurança que guarneciam o local não foram mais do que “sol de pouca dura”, ou seja, só trabalharam nas primeiras semanas. Por último, entendem que os critérios de distribuição dos sete mil meticais não foram claros, pois, muitas vezes, tiveram como base o nepotismo, o camaradismo e as aparências, tendo havido muita corrupção. Como Roger Fabião e o seu companheiro de trabalho, Jaime Nwambe usa o local para travar outros combates da vida, como a miséria e a fome. De 20 anos, Jaime diz viver maritalmente e ainda não tem filhos.

Conta um ano desde que se estreou naquele mundo. Pelo facto de não possuir outra forma de sobrevivência foi obrigado a encarar a actividade de forma séria e como principal ganha-pão. Por dia, em média, transporta nas costas catorze sacos de cinquenta e sessenta quilogramas para a sua casa que dista três quilómetros da fonte. Desse exercício, consegue 750 meticais que na sua óptica são insignificantes, mas ajudam nas pequenas coisas. Mesmo com os riscos que correm, há mulheres que levam consigo os filhos. Luciana Machava é uma delas. Com três filhos por zelar, esta mãe solteira faz-se ao local três vezes por semana e nos restantes dias vai à machamba. Começou a fazer o negócio há um ano e, nos últimos meses, trouxe o filho mais velho a fim de ajudá-la no transporte da areia. O miúdo chama­se Fernando, tem 16 anos e não frequenta a escola, pois este ano perdeu a vaga na oitava classe por falta de dinheiro. O sonho do rapaz é um dia ser médico, porém, parece que o destino lhe trocou os caminhos.

Neste momento, no lugar de um estabelecimento de ensino, o jovem vai às grutas. Se dependesse de si, no próximo ano, voltaria aos bancos da escola, mas duvida porque a mãe não tem condições e o pai nunca assumiu a suas responsabilidades. “Se tudo correr como quero, no ano que vem voltarei a estudar. Não quero continuar nesta vida. Venho aqui porque vivo desocupado e a minha mãe precisa de ajuda”, contou o miúdo enquanto brincava com uma enxada velha e gasta, como estão cansadas as suas esperanças de uma vida melhor. Por dia, o pequeno chega a fazer quatro viagens transportando às costas sacos que, normalmente, pesam 50 quilogramas. Apesar de tudo não reclama. Diz estar habituado. Fernando junta-se, assim, a muitos outros adolescentes que andam por ali, à semelhança de Claudina, de 19 anos, mãe de dois filhos que, desprezando os conselhos do marido, tenta a sorte nas grutas da morte porque o seu consorte é guarda de uma empresa privada de segurança e o seu ordenado mensal não cobre as despesas caseiras.

Autoridades locais

Olhando para a febre e o ritmo acelerado com que a exploração decorre no local, tudo leva a crer que nada tem sido feito pelas autoridades locais com vista a impedir o crescimento da actividade. No entanto, segundo as palavras de Fernando Mabjaia, régulo da zona, o governo já tentou combater a prática por via de multas. Nesse processo houve pessoas que foram presas em conexão com o caso. “Eu sou contra tudo aquilo porque muita gente morre no local. No passado mês de Março, algumas pessoas contraíram ferimentos em consequência de uma derrocada”, conta o régulo reconhecendo logo que, apesar de ser arriscada, a actividade é rentável e constitui uma autêntico balão de oxigénio para os residentes, pois algumas pessoas chegam a construir casas com a receita que tiram dali. Mabjaia sublinha que a situação se torna mais caótica no tempo chuvoso quando a terra fica húmida e mais propensa aos desabamentos.

“As chuvas criam crateras que se racham e deixam cair pedras, mas nem sempre são a principal causa dos desabamentos. Às vezes, os acidentes acontecem porque aquilo está próximo da linha férrea e os homens não observam qualquer medida de segurança”, referiu o chefe do posto. O nosso interlocutor contou que, nos últimos dias, o governo distrital fez de tudo para parar as actividades. Enviou um contingente policial para controlar o espaço, todavia as pessoas voltam sempre, escudando-se nos argumentos de que não há emprego na zona. “Quando nos reunimos da última vez usámos a perda de vidas como arma para convencê-los, mas estes responderam que os perigos estão em todo lado e que, mesmo nas minas da África do Sul, muita gente morre mas o governo daquele país nunca pensou em fechar”, explicou.

Neste momento, segundo o chefe do posto, a administração distrital está a encetar negociações com a direcção provincial dos Recursos Minerais com vista a que se crie um instrumento legal que penalize os desmandos naqueles espaços de morte. “Pensamos que dessa forma vamos dar um ponto final ao problema e, provavelmente, tudo virá a acabar bem”, acredita Jaime Malau.

Das grutas ao mercado

A areia é transportada e vendida aos retalhistas da capital a preços considerados baixos e em sacos normalmente não transparentes para desviar a atenção das autoridades locais, pois é um negócio proibido. De Nhongonhane é carregada por camionetas e carrinhas de transporte semicolectivo de passageiros ao custo que varia de cinco a dez meticais, conforme o tamanho. No mercado doméstico, ou seja, nas províncias de Maputo, Gaza e Inhambane, o produto chega a custar 200 meticais por lata de 20 quilogramas, ao passo que no estrangeiro, como na África do Sul vende-se a 250 meticais, segundo ficámos a saber no local. Para os pequenos compradores, o produto é vendido em púcaros ao preço que varia entre três e cinco meticais cada.

As mulheres grávidas são tidas como potenciais consumidoras, mas, nos últimos anos, a areia tem granjeado simpatia por parte de outros clientes, nomeadamente jovens e adolescentes do sexo feminino. Na fonte, os moldes de comercialização variam de acordo com o proprietário. Geralmente, os homens vendem areia bruta no valor de trinta meticais por cada saco de 40 quilogramas. As mulheres pilam, seleccionam, põem nas bacias e vendem-na ao preço de 50 meticais. A seguir é submetida a um processo de transformação que passa pela adição de sal, incluindo a cozedura que dura entre duas e três horas.

Por fim, é pilada e misturada com detergentes, muitas vezes, sabão em pó e caldo. De acordo explicações que fomos colhendo, estes procedimentos visam facilitar a digestão e conferir mais sabor à areia. Daqui o produto está pronto para ser comercializado, a nível local e fora do país. Há quem tenha chegado à conclusão de que o produto virou um negócio internacional.

*Colaboração

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