O semanário “Domingo” juntou-se ao coro barulhento das pessoas que querem acabar com as inspecções obrigatórias das viaturas em Moçambique. Isso avaliando pelo editorial da sua última edição, no qual apela ao governo moçambicano a parar com as inspecções.
“Paremos para pensar em diálogo com os cidadãos”, lê-se no seu editorial.
Quais cidadãos?
Serão aqueles que diariamente são mortos e mutilados nas estradas do país? Ou os dois por cento dos agregados familiares que (segundo o censo de 2007) possuem viaturas? Ou talvez o “Domingo” está apenas a pensar naquela percentagem insignificante da população moçambicana que é detentora de viaturas para o transporte semi-colectivo de passageiros, vulgo “Chapas”, a maioria dos quais superlotados, com uma manutenção deficiente, mas responsável por grande parte de transporte urbano de passageiros.
Os argumentos apresentados pelo “Domingo” contra as inspecções são similares aos que foram apresentados pelos proprietários dos “Chapas” durante as reuniões com o Instituto Nacional de Viação (INAV). O editorial fala de “caminhos e vielas esburacados, com autênticas crateras, aqui e acolá” que, segundo o semanário, se calha os Chapas serem novos, dias depois estão completamente “escafiados”. Como resultado, refere o “Domingo”, a maioria das viaturas estão condenadas a chumbar nas inspecções. Será que os editores do “Domingo” estão realmente a tentar nos dizer que as pessoas conduzem as suas viaturas sem faróis de iluminação porque as estradas estão em más condições?
Ou que as estradas esburacadas danificam o sistema dos travões mais que as estradas de alta velocidade? O “Domingo”, que era um dos apoiantes declarados da Frelimo, partido no poder, e de seus governos, parece ter esquecido que nos últimos anos foram investidos centenas de milhões de dólares na reparação das estradas moçambicanas. Actualmente, uma maior percentagem da rede rodoviária está em condições boas ou razoáveis que em qualquer momento desde o fim da guerra. Será que nós devemos aguardar até que todas as estradas estejam asfaltadas, e que todos os buracos sejam tapados antes de introduzirmos a inspecção de veículos para avaliar o seu estado mecânico?
O “Domingo” deplora o facto de as inspecções estarem a ser feitas através de “meios electrónicos sofisticados em acção no mundo desenvolvido, que não as reparações têm, por forças das circunstâncias e das mossa deficiências, de ser feitas em oficinas de vão de escada ou debaixo de um cajueiro”. Esta observação poderá ser uma coincidência de pontos de vista, ou então é um plágio flagrante de uma intervenção descabida por um proprietário de um chapa, que, durante uma reunião com o INAV, que teve lugar na quarta-feira da semana passada em Maputo, falou precisamente de “meios sofisticados” versus reparações feitas “debaixo do cajueiro”.
Pior ainda, o “Domingo” alega que as inspecções não são úteis para Moçambique pelo facto de terem sido importadas do Primeiro Mundo. O editorial sustenta que as pessoas que ordenaram as inspecções (possivelmente o “Domingo” está a referirse ao ministro dos transportes, Paulo Zucula), tomaram esta decisão com a “cabeça no Primeiro Mundo, sem uma leitura atenta a nossa realidade”. “Não nos parece política de desenvolvimento saudável usar critérios para o Primeiro Mundo”, acrescenta o “Domingo”. Assim, para o “Domingo” parece que as inspecções apenas servem para os europeus, mas não para os africanos, banir as viaturas com problemas no sistema de travões, no sistema de direcção, ou emissão de gases de escape que envenenam a atmosfera com densas nuvens de fumo. Isto pode ser considerado o racismo de baixas expectativas. Este também é a mesma forma de pensar daqueles que fazem a vista grossa e aceitam a corrupção porque “isto é Africa”.
“Isto é Africa” e, por isso, deveríamos aceitar tudo o que é de segunda, terceira ou mesmo decima categoria. Nós não deveríamos exigir que as nossas estradas sejam tão seguras como as da Europa, pensam estas mesmas pessoas. A abordagem do “Domingo” é uma contradição abismal com o ponto de vista da liderança da Frelimo. Os apelos constantes do presidente Armando Guebuza para a autoestima não são compatíveis com as do “Domingo”, que defende a contínua circulação nas estradas moçambicanas de armadilhas volantes. Talvez o “Domingo” acredita que o primeiro presidente de Moçambique independente, Samora Machel, tinha a sua mente o Primeiro Mundo. Durante uma visita ao Porto de Maputo em 1980, Machel perguntou ao então ministro dos transportes, José Luís Cabaço, sobre a sua eficiência.
“É melhor que o Porto de Dar-es- Salaam”, foi a resposta de Cabaço. “Mas é melhor que o Porto de Roterdão?”, questionou Machel de seguida. Para Samora Machel, a questão que se colocava era se o porto era ou não eficiente. Quer dizer se reunia ou não os padrões profissionais, isso porque não “existe um padrão africano” separado ou diferente dos “padrões europeus”. O mesmo pode ser dito com relação a segurança rodoviária, porque não existe tal coisa de “segurança Africana ou do Terceiro Mundo” que seja diferente da “Segurança do Primeiro Mundo”. Em poucas palavras, ou um determinado veículo está em condições de circular ou não está. Isso porque quando uma viatura com deficiências mecânicas atropela um peão africano, a vítima sangra e morre a semelhança de um peão europeu.
“Domingo” também sugere que o estado mecânico de uma viatura é uma coisa secundária, porque morrem mais pessoas devido a condução em estado de embriaguês ou por excesso de velocidade. Isso até pode ser verdade (apesar de o “Domingo” não citar dados estatísticos), mas não constitui motivo nenhum para permitir a circulação de viaturas em mau estado mecânico. No mundo moderno, os governos fazem leis para evitar todo o tipo de ameaças. Ou seja, não se limitam a dizer que “não temos alcoolímetros ou equipamento para o controlo de velocidade em número suficiente e, por isso, não deveríamos inspeccionar o estado mecânico das viaturas”.
O “Domingo” alega que o controlo da alcoolemia e de velocidade é praticamente inexistente. Mesmo que isso fosse verdade, jamais poderia servir de argumento para impedir as inspecções. Contudo, esta alegação não é verdadeira, porque eu conheço indivíduos em Maputo que foram submetidos a testes de alcoolemia e outros que foram multados por excesso de velocidade. É evidente que não existe número suficiente de alcoolímetros em Moçambique. De facto, não existe número suficiente de agentes das forças da lei e ordem, incluindo da Polícia de Trânsito.
Então será que isso quer dizer que deveríamos adiar o combate ao crime até conseguirmos um número de agentes da polícia duas, três ou dez vezes superior ao actualmente existente em Moçambique? Para o “Domingo”, a escassez de recursos é razão suficiente para desistirmos. Se essa mentalidade tivesse vingado há algumas décadas, certamente que Moçambique ainda estaria sob o jugo colonial português.