Mandela, Chissano, Rawlings, Zéroual, Kékekou, Ratsiraka…são chefes de Estado que já passaram o testemunho. Após o inebriamento do palácio, nada é simples. Por isso, uma reforma tranquila é uma garantia de estabilidade política. É histórico e verídico o que se passou com um presidente de um país da África central que no seu longínquo exílio continuou, anos após a sua queda, a assinar leis e decretos, promoções e despedimentos, sobre o papel timbrado de chefe de Estado.
Em desespero de causa, após nomear o motorista e o cozinheiro para o seu gabinete fantasma, o nosso homem acabou por assinar a sua própria destituição: uma vida nova podia então começar. Patético? Sem dúvida. Mas pelo menos este personagem, grande amante dos lacinhos, tinha uma desculpa. Derrubado por um golpe de Estado, passou directamente do inebriamento do palácio presidencial para uma cela desoladora, sem o mínimo de assistência. Um caso cada vez menos frequente no continente que em Julho de 1999, em Argel, ainda a principal organização continental se chamava Organização de Unidade Africana (OUA), decidiu banir – e punir – as mudanças de poder pela força.
A partir daí o destino da vítima exilada e inconsolável é, pouco a pouco, substituído por uma equação insolúvel: como encorajar os dirigentes a abandonarem democraticamente as suas funções no termo do seu mandato? E como desencorajá-los do manipulamento das Constituições igualmente inconstitucional? Com efeito, se se olhar com atenção, se se focalizar sobre os golpes de Estado para condená-los, como o faz a comunidade internacional, não serve de muito se as coisas que eles engendraram não são tidas em consideração. Da República Centro Africana à Mauritânia, passando pela Guiné-Bissau, Madagáscar e Guiné-Conacri, a maior parte dos “putschs” ocorridos após a declaração de Argel resultam muito mais de uma ambição pessoal posta a nu do que o culminar de uma crise política e institucional aguda.
Quando os líderes, democraticamente eleitos começam, pouco a pouco, a ter um comportamento errático perdendo-se na má governação, esperar pelo fim legal do mandato por vezes é insuportável e o golpe surge como um mal necessário. Mas o que dizer quando esses mesmos líderes, incluindo os mais conceituados, modificam as constituições para beneficiar de uma “arrendamento” vitalício? Na grande maioria dos casos, um mínimo de alternância favorece grandemente a qualidade e a eficácia da governação e reforça a democracia. Sem cair na complacência do constitucionalismo, nenhuma Constituição é por natureza intocável, por isso importa convencer os detentores do poder que nada marca mais num homem de Estado do que a sabedoria de passar o testemunho a uma nova geração na hora certa.
Noutros termos: a alternância no poder é a chave para a estabilidade e o antídoto para os golpes de Estado. É igualmente necessário chamar a atenção dos líderes para a necessidade de se assegurar o bom funcionamento de uma política de pensão porque, por vezes, quem sai do posto ainda está no auge da vida. A sua segurança financeira e física (protecção), bem como a manutenção dos privilégios e de imunidade diplomática devem estar garantidas, o que tem por colorário a ausência, por parte dos seus sucessores, de todo o espírito de vingança, de perseguição e humilhação. Causar nos “ex” a impressão de que são sempre escutados e úteis à nação, fazer com que não sejam marginalizados, qualquer que seja o quadro no qual eles evoluem, é igualmente indispensável. Como todos sabemos, o tédio é a mãe de todas as conspirações.
Para quando um estatuto pan-africano?
Uma das garantias que poderia convencer os presidentes em fim de mandato a nada temerem era que em relação à sua família e aos mais próximos não seria levantado qualquer clima de denegrição. Daí resulta a necessidade de se proceder brevemente ao estatuto panafricano dos antigos chefes de Estado, inscrito na Constituição a fim de que as suas garantias sejam doravante “ligadas à função e não ao indivíduo que as desempenha”, sublinha o diplomata da ONU Ahmed Ould Abdallah. Um estatuto que, numa primeira fase, beneficiaria todos os “ex” incluindo os autores de golpes de Estado que se mostrassem arrependidos embora devessem ser obrigatoriamente observadas três condições:
Respeitar os limites constitucionais dos mandatos para os quais foram eleitos – ou, se uma modificação do número e da duração destes mandatos fossem indispensáveis, deveria elaborar-se uma emenda mas de modo a que esta não beneficiasse o autor mas sim os seus sucessores.
Chegar ao poder pelas urnas e não pelas armas e exercê-lo sem violação grosseira dos direitos humanos.
Comprometer-se, uma vez entregues a chaves do palácio, a não se confrontar permanentemente com o novo ocupante como, por exemplo, encabeçar a liderança de um partido político ou conservar a presidência do partido maioritário (como o fez, nos Camarões, Ahmadou Ahidjo), é assim um factor de tensão, por vezes dramática, a proscrever. Neste ano de 2010, dois “ex”, Henri Konan Bédié (Costa do Marfim) e Ange- Félix Patassé (República Centro Africana), estão directamente empenhados na corrida eleitoral com a firme intenção de reconquistar o poder. Para eles a vida depois do poder não é nem um sacerdócio nem uma sinecura. É um parêntesis.
Mathieu Kérékou – Benin (1972 – 1990 e 1996 – 2006), 76 anos
“É um velho pai”, confidencia um elemento da família daquele que no Benin é conhecido pelo “Camaleão”. Kérékou soube adaptar-se aos ventos da História e mostra-se perfeitamente à vontade na sua nova condição de reformado. Recebe poucas visitas, avista-se amistosamente com o presidente Boni Yayi e recusa tecer qualquer comentário político. Diga-se que o silêncio é uma segunda natureza deste homem que sempre suscitou respeito e receio. Recusa, de uma forma educada mas firme, todas as solicitações mediáticas e institucionais, mas conserva a sua aura de chefe supremo: com um simples telefonema a um antigo homólogo pode desbloquear uma situação e fazer toda a diferença. Desde a sua residência de Cotonou, Kérékou sabe que ainda pesará na eleição em 2011. Mas em silêncio.
Frederik De Klerk – África do Sul (1989 – 1994), 73 anos
Desde que extinguiu o apartheid, em eleições livres e perdeu o poder para Nelson Mandela, em 1994, Frederik De Klerk retirouse, conjuntamente com a sua esposa Elita, para a sua propriedade agrícola perto de Paarl – região do Cabo Ocidental. Através da sua fundação (FW De Klerk), o Prémio Nobel da paz continua a batalhar pela paz e pela reconciliação. Mas se o seu percurso vale todos os seus discursos, a sua palavra é, todavia, hoje pouco escutada. Isso não o impede de tecer opiniões acerca da política nacional. O antigo advogado continua a ter muito boas relações com Nelson Mandela, que lhe rendeu homenagem quando o último presidente do apartheid completou 70 anos, encorajando a África do Sul a reconhecer a sua autoridade moral e a sua contribuição para a história do país.
Maaouiya Ould Taya – Mauritânia (1984 – 2005), 66 anos
Desde a sua queda que Taya vive no Qatar. O emirado concordou em conceder- lhe exílio bem como à sua esposa e aos 4 filhos do casal. A fim de preservar o bom relacionamento entre Doa e Nouakchott, o Governo do Qatar só impunha uma condição: o não exercício de qualquer actividade política. O antigo coronel tem observado esta condição exemplarmente. Em cinco anos de exílio não concedeu qualquer entrevista Os seus próximos que continuam na Mauritânia adoptaram o mesmo comportamento. O seu exílio é passado numa bela e confortável mansão em Errayan, nos arredores de Doa, e o seu quotidiano é preenchido com leitura, natação, televisão, passeios e até mesmo idas ao supermercado na companhia da esposa. Aqui encontra uma tranquilidade que não teria em Nouakchott, onde a sua herança está ainda envolta em polémica. Tido como o responsável pelo descalabro económico e pelas atrocidades cometidas contra os negros mauritanos no final dos anos ´80, Taya ainda suscita animosidade numa grande parte da população. Outros, inquietos por verem os seus privilégios desaparecer, esperam o seu regresso breve. O assunto é bem quente e as autoridades de Nouakchott não podem impedir o seu regresso desde que ele queira voltar.
Moussa Traoré – Mali (1968 – 1991), 73 anos
Duas vezes condenado à morte e posteriormente indultado em 2002 pelo ex-presidente maliano Alpha Oumar Konaré, Moussa Traoré vive hoje uma reforma piedosa e pacífica. Despido de todos os seus direitos de chefe de Estado, beneficia, contudo, da clemência dos seus sucessores de que é exemplo a casa que lhe atribuíram no bairro Djikoroni- Para, no centro de Bamako, uma guarda pessoal, viatura e uma renda mensal de cerca de 1700 USD. As suas principais actividades consistem em receber amigos, passar temporada nas suas terras de Kassela – a 30 quilómetros da capital – e rezar. Todavia, à sexta-feira não se desloca à grande mesquita de Bamako, onde a sua presença iria perturbar as autoridades. Prefere ir ao templo do seu bairro que foi praticamente construída só para si. Traoré conhece desde há pouco tempo um grande aumento de popularidade. Nos funerais onde se desloca o calor humano em seu redor é bem visível. Poderá influenciar as eleições de 2012 apoiando o seu genro Cheikh Mobibo Diarra.
Joaquim Chissano – Moçambique (1986 – 2005), 70 anos
Quando abandonou o poder de uma forma voluntária, Joaquim Chissano prometeu dar atenção à família, promessa que não se verificou. O vencedor do prémio Mo-Ibrahim de 2007 – o montante ascende a 5 milhões de dólares e a mais 200 mil USD anualmente – depois de abandonar a presidência não concorreu para qualquer mandato, como muitos chefes de Estado do continente fizeram. “Tentei reduzir as minhas actividades no exterior, mas não estou a conseguir”, afirmou Chissano há algum tempo. “A crise malgaxe, da qual sou mediador, ocupa-me de tal maneira que recentemente fui obrigado a faltar a cinco compromissos de agenda que tinha no meu país.” Activo no terreno diplomático, Chissano tem-se empenhado igualmente em matérias de desenvolvimento, sendo, desde 2005, Conselheiro da Conferência das Nações Unidas sobre comércio e desenvolvimento. A fundação Joaquim Chissano, cujo objectivo é a promoção da paz e do desenvolvimento económico e cultural de Moçambique, tem sido também uma grande fonte de ocupação e uma das formas de o ex-presidente se recentrar no seu país. Mas o seu maior desejo é desenvolver agricolamente as terras e o gado que possui em Gaza, a sua província de origem.
Didier Ratsiraka – Madagáscar (1976 – 1993 e 1997 – 2002), 73 anos
Aos 73 anos, “O Almirante Vermelho” parece beneficiar de uma segunda juventude. A última crise malgaxe, que opõe o seu sucessor, Marc Ravalomanana, ao actual homem forte de Madagáscar, Andry Rajoelina, teve em si o efeito de uma cura de rejuvenescimento. Exilado em França há oito anos, Didier Ratsiraka não só voltou à ribalta política como dominou os debates entre os diferentes movimentos políticos malgaxes. Sempre vivo, pujante, com um inegável sentido da fórmula e da palavra, parece longe da reforma. No seu apartamento de Villa Madrid, um enclave privado e muito chique de cidade de Neuilly-sur-Seine, o antigo presidente vive sem ostentação e sem o auxílio do governo malgaxe. Recebe poucas visitas, aparece ainda menos e não dá qualquer entrevista. A sua única intervenção pública, em 2008, difundida por um canal privado malgaxe – pertencia a Andry Rajoelina – soou a acusações contra Ravalomanana.
Jerry Rawlings – Gana (1979 – e 1981 – 2001), 62 anos
Desde a sua partida da presidência, o “Redentor” – o seu cognome no Gana – conservou uma agenda muito carregada. No segundo semestre de 2009, esteve na Costa do Marfim, nos EUA – a convite de Bill Clinton -, na Noruega e no fórum Africités, em Marraquexe, Marrocos. Convidado estrela, Rawlings desenvolve temas que lhe são caros como a defesa dos mais desfavorecidos, pan-africanismo, boa governação e desenvolvimento, descentralização… O seu principal alvo é a família Bush, acusada de ter dado um mau exemplo em matéria de herança presidencial. Mas “JJ” faz-se sentir também no interior do país, particularmente quando acusa o seu sucessor, John Kufuor de ser um “escroque” e de desempenhar o papel de vigilante no seio do Congresso Nacional Democrático (NDC, sigla em inglês), partido do qual foi fundador. Rawlings tem os seus compatriotas informados de todas as suas actividades através do seu blogue.
Liamine Zéroual – Argélia (1994 – 1999), 68 anos
Divorciado das actividades protocolares, Zéroual tem preferido uma vida pacífica e tranquila para a sua reforma na sua cidade natal de Batna, consagrando a maior parte do tempo à sua família. Desde que abandonou o poder, só por uma vez, em Fevereiro de 2009, saiu do seu mutismo, quando personalidades políticas e intelectuais o interpelaram publicamente, tentado atirá-lo para uma corrida presidencial contra Abdelaziz Bouteflika. Zéroual declinou a oferta num lacónico comunicado divulgado pela imprensa. Hoje vive da pensão de antigo chefe de Estado que, acumulada com a sua reforma de general, perfaz um rendimento mensal de cerca de 4300 USD. A sua casa, que foi totalmente construída com recurso ao crédito bancário, está totalmente paga.