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Zé Rui Martins: “Está a faltar uma ofensiva de afectos para as artes em Moçambique!”

Zé Rui Martins: “Está a faltar uma ofensiva de afectos para as artes em Moçambique!”

Na cavaqueira travada, muito recentemente, com @Verdade na sua (efémera) estada em Maputo, Zé Rui Martins, o declamador da palavra em riste, aproveitou os ares incisivos do seu concerto, “20 Dizer”, para rechaçar as tendências – torpes – com que a crise financeira internacional açoita o movimento artístico na comunidade lusófona. Para si, a fraca visibilidade da cultura moçambicana – na “África Portuguesa” – é proporcional à vontade política do Governo.

Se fosse para contar parte importante das peripécias que – a partir dos anos de 1990 – uniram Moçambique a Portugal no teatro, remontaríamos aos anos de 1993/4 para começar por dizer:

“No dia em que as circunstâncias – na verdade, a força da coincidência – os impeliram a realizar dois concertos distintos, com igual número de teatros magnânimos, a estrutura cénica não escapou à nobreza”.

Afinal, foi assim que naquele ano as ruínas de determinado automóvel associaram o Grupo de Teatro Mutumbela Gogo, de Moçambique, ao Teatro Trigo Limpo da Associação Cultural e Recreativa de Tondela (ACERT), em Portugal, para apresentarem, respectivamente, as obras teatrais, A Roda da Vida – escrita por Mia Couto – e Os Meninos de Ninguém.

Aliás, no ano anterior, Zé Rui Martins havia-se tornado o primeiro dramaturgo português a encenar uma obra literária do escritor moçambicano Mia Couto.

“Foi uma experiência fabulosa, primeiro por ter sido autêntica e verdadeira. Quando li o seu livro ainda não sabia exactamente quem era Mia Couto. Estávamos no ano de 1993. Nessa altura Mia Couto já era um grande escritor, apesar de que não tinha a projecção que agora possui ao nível internacional e, de uma forma particular, em Portugal”, conta o declamador sem evitar a emoção que o feito lhe traz.

Para Zé, “foi difícil saber quem era o escritor cuja obra eu estava a ler”, o que fez com que “eu ficasse tão sôfrego, no sentido de saber o que é que aquelas histórias poderiam dar sob o ponto de vista teatral”.

Não tardou muito para que, imediatamente, Zé Rui Martins “conseguisse ligar a Mia Couto de tal sorte que ele – generoso – facilitou o processo da adaptação da obra para o teatro”.

Um mês depois, “a Manuela Soeiro telefonou- me, dando a informação de que o Mutumbela Gogo levava a peça Os Meninos de Ninguém a Portugal. E que tinha a pretensão de que os nossos grupos se encontrassem para realizar uma projecção simultânea das suas obras. Isto criou-nos uma alegria imensa”. Assim, “recebemo-los no nosso teatro”.

Na memória, ruínas (imortais) de um automóvel!

Ora, se recordarmos que independentemente da complexidade/simplicidade do concerto, no teatro o cenário em que as obras são apresentadas interfere na qualidade assim como na eficácia da mensagem que se pretende transmitir, como é que os actores do Mutumbela Gogo iriam superar o impasse que eventualmente se iria instalar?

O Mutumbela não podia levar o cenário do seu espectáculo, restos de um automóvel, para a Europa. Surpreendentemente, sucedeu que a estrutura cénica do Teatro Trigo Limpo também era um autocarro degradado.

Ninguém consegue explicar as razões desta coincidência. Se foram obra do acaso ou puros caprichos do destino. O facto é que as obras de ambos os grupos tinham como cenário os restos de um automóvel. Por isso, tudo ficou facilitado.

Isto equivale a dizer que “no primeiro dia fizemos o nosso concerto (A Roda da Vida) e, no seguinte, o do Mutumbela (Os Meninos de Ninguém). Ou seja, “fizemos dois concertos distintos, envolvendo dois grupos magnânimos, com a mesma estrutura cénica, os restos de um automóvel. Certamente que o evento foi espectacular, mágico e memorável”, enfatiza Zé Rui Martins.

Tudo menos a graça do riso!

Dono de uma interacção invulgar com o público, Zé Rui Martins considera que o seu concerto se chama “20 Dizer” por privilegiar a comunicação directa com a assistência. Um espectáculo que traz recados da “minha intimidade, da minha forma de ver o mundo, assim como de uma visão poética, onde o humor é um elemento central sob o ponto de vista da denúncia das atrocidades que decorrem na sociedade”.

A relação que mantém com o público (a quem, através da sua arte, busca fazer feliz) dotou-lhe de maturidade suficiente para afirmar que “já há bastante tempo que penso que o humor tem a particularidade de ser um instrumento incrível de comunicação universal”.

Na verdade, o artista pretende dizer que “a perversidade de alguns governos, a disfunção das instituições financeiras internacionais, as crises sociais, as catástrofes e calamidades naturais podem tirar muitas coisas no Homem, mas nunca a nossa graça de rirmos das ocorrências”. Por isso, “o riso e o sorriso são uma arma ultrademocrática”.

Da paixão…

Nos dias em que decorreu o V Festival Marrabenta, Zé Rui Matins esteve no país. Na conversa que mantivemos, a forma como ele se refere às artes moçambicanas – música, teatro, cinema, artes visuais – denuncia a sua paixão por Moçambique.

O artista possui uma atracção forte e autêntica por Moçambique de tal sorte que se fica com a impressão de que, para se ser nacional de determinado país, não basta que a pessoa tenha nascido nesse local. Mas a identidade para com a cultura e a sua tradição são elementos essenciais.

Trata-se de uma ligação umbilical – com o país – necessária para lutar pelo progresso do mesmo. Qualquer coisa que se fosse possível inculcar nalguns cidadãos nacionais fá-lo-íamos pelo bem do país. No entanto, lamentavelmente, a realidade prova-nos o contrário.

Percebamos então como Zé Rui, este homem que nasceu para a arte, inaugurou esta intensa relação cultural com o “País da Marrabenta”.

Na verdade, a relação de Martins com o nosso país é antiga. Diríamos que é a metáfora dos encontros entre Portugal e Moçambique, sobretudo no teatro. Os anos de 1993/4 têm uma particular importância porquanto tenha sido nesse período que (como se disse) descobriu a obra de Mia Couto, a qual mais adiante transformou num concerto teatral.

Anos antes de Moçambique conquistar a liberdade do jugo colonial a que estava sujeito em relação a Portugal, Zé Rui combatia pelo mesmo ideal.

Por essa razão, naquele período o artista acreditava que, perante os indicadores da vida social contemporânea em Portugal que precipitaram o golpe do Estado ocorrido a 25 de Abril de 1974 – que ficou conhecido como Revolução dos Cravos – Zé Rui participou nos movimentos de intervenção social e através do teatro. O objectivo era a conquista da liberdade do povo português, mas também dos povos oprimidos por aquele país.

O primeiro sintoma da força dos referidos movimentos foi o surgimento da ACERT – de que falámos antes – em 1976. Aliás, esta ocorrência está relacionada com o associativismo cultural em Portugal.

Nas palavras de Zé, “o associativismo cultural teve um estrondo grande após a Revolução de 25 de Abril. Foi nessa altura que nós, os portugueses, conquistámos a nossa liberdade, o direito de construirmos o nosso país, de estabelecer (boas) relações com outros povos colonizados por Portugal – um dos quais Moçambique – cujas lutas pela conquista das independências nos identificavam”.

Não tardou muito para que em 1979, a ACERT – que inicialmente era composta por jovens portugueses que se juntaram para intervir através do teatro – se transformasse numa agremiação artística com múltiplas disciplinas.

Vale a pena acrescentar, aqui, que o facto de a ACERT – num momento de crise como o hodierno – possuir mais de três mil sócios, um forte grupo de trabalho voluntário, assim como um sector profissional revela claramente como o associativismo funciona naquele país.

Potência cultural que se chama Moçambique

Por todos estes motivos – coloniais, africanos, artísticos, culturais – foi possível produzir ao longo dos anos a paixão de Zé por Moçambique. Um encanto autêntico e notável nestas observações:

“Eu sempre disse, e não é de agora, que Moçambique é uma potência cultural e artística a ter em conta no mundo. Nas várias disciplinas artísticas e literárias é inevitável não reconhecer a sua supremacia. Isso é tão notável de tal sorte que me escuso a citar nomes de determinados artistas sob pena de me esquecer de outros. E atenção que isso não é uma opinião pessoal”.

O mentor do “20 Dizer”, que celebra uma carreira de mais de 30 anos, “lendo, declamando, comunicando, dando vida à palavra escrita através do teatro”, recorda que “tenho sido espectador (em Portugal e em diversas países da Europa) de realizações culturais com qualidade extraordinária protagonizadas por artistas moçambicanos”.

Aqui falo, por exemplo, “dos grupos de Teatro Mutumbela Gogo e M´beu. É um facto que o teatro moçambicano possui uma vitalidade e linguagem próprias”. Noutras palavras, “além de ter bons actores e dramaturgos, a sua forma de construir os espectáculos é de uma qualidade notável”.

Ora se, por pura suposição, anulássemos tudo o que – até esta parte – Zé Rui Martins afirmou sobre o nosso país e passássemos para o estágio seguinte em que o artista desenvolve o seu ponto de vista em relação à música e às artes plásticas, compreenderíamos melhor que Moçambique é um país com todos os condimentos para dar certo pelo menos no campo das artes.

No mesmo prisma Zé Rui Martins considera que “no caso da música, por exemplo, podia ficar dois dias/três a enumerar intérpretes, compositores e instrumentistas moçambicanos com um pendor musical incomum, na forma como desenvolvem o seu trabalho artístico e, mesmo assim, faltar-me-ia tempo para me referir a todos”. Aliás, para Zé o outro exemplo é o facto de “as artes plásticas moçambicanas serem mais um dos sectores que dispensam qualquer comentário”, diz.

…à decepção!

Se eu – o autor destas linhas – dissesse que apesar da descrição pitoresca que o meu interlocutor faz em relação à nossa produção artística – genial – determinados aspectos relacionados com a forma como o encaminhamento dos produtos artísticos no mercado internacional é feito são – para Zé Rui – uma decepção, o estimado leitor acreditaria?

Incrível, mas é verdade. De qualquer forma, antes de apontar as razões que desapontam-lhe vale a pena deixá-lo clarificar outro aspecto: “quando digo que Moçambique é uma potência – em termos artísticos – isso não tem a ver com uma noção de poder, mas de riqueza no sentido cultural e artístico. E não é só no contexto africano, mas global também”.

Na verdade, a questão do desagrado de Zé Rui – que na verdade devia ser de todos nós, os moçambicanos – veio à tona quando pedimos a sua opinião em relação à visibilidade das artes moçambicanas no espaço lusófono.

Neste campo Zé considera que, de certa forma, o espaço lusófono é muito grande para fazer esta análise. Por isso, “penso que no contexto da lusofonia a visibilidade das artes moçambicanas tem um défice muito grande”.

Por isso, “acho que as artes moçambicanas precisam de uma outra afirmação ao nível dos países falantes do português. No meu ponto de vista – algo contraditório por ser pessoal e que por isso pode ser contestado – não há dúvida nenhuma de que se as artes moçambicanas fossem promovidas de uma (outra) forma melhor, havendo uma boa atitude da parte institucional, uma postura favorável de apoio dos mecenas, a produção cultural moçambicana poderia marcar muitos pontos e servir como uma fonte (adicional) de divisas para o desenvolvimento do país”.

Porque não lhe faltam indicadores para comprovar as suas afirmações, o português convida-nos a observar o exemplo dos (nossos irmãos) cabo- -verdianos:

“Nos dias que correm, a morna e a coladera – géneros de música cabo-verdiana – são hoje uma fonte de divisas para Cabo Verde. Ou seja, a cultura e as artes já não são sectores aparentemente deficitários, como se dizia há alguns anos”.

“A área de espectáculos movimenta uma enorme quantidade de profissionais. Conjugam-se, aqui, o turismo, os materiais utilizados para a produção dos eventos – o que dinamiza as pequenas empresas – os seus operadores. Quero dizer, há uma série de relações económicas envolvidas”.

“Portanto, na minha opinião, está a faltar uma ofensiva de afectos artísticos – da parte institucional – na cultura moçambicana, o que faz com que ela dificilmente se projecte no mundo, assim como a cabo-verdiana, ou angolana se projectaram”.

Agora é que estamos (cada vez) mais distantes

Nessa altura – da conversa que durou menos de uma hora – @Verdade ganhava novo fôlego, relançando mais uma questão séria no tópico intercâmbio artístico entre os membros da chamada Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP.

@Verdade fá-lo na perspectiva de que o desenvolvimento tecnológico – as linhas aéreas sobretudo – que possibilita a realização de voos internacionais directos (teoricamente) aproximou, cada vez mais, os Estados. Será que esta conexão ao nível das artes, do intercâmbio cultural, também é saliente?

Zé Rui Martins diz que sim, não difere de cometer um tremendo engano. Para si, o melhor é assumir o imprudente não, sobretudo porque é verdade.

É por essa razão que, “sinceramente julgo que não. Há momentos pontuais em que os artistas – entre si – fazem esforços incríveis para favorecerem e contribuírem para o desenvolvimento cultural dos seus países. Mas tal, muitas vezes, é feito por conta e iniciativa próprias”.

Na visão de Martins, “se se tivesse que esperar pelo apoio governamental, muito pouco – no campo do intercâmbio cultural- teria sido feito até o momento” como, por exemplo, entre Portugal e Moçambique.

Então, “acho que essa ponte – a dos transportes – mais do que aérea devia ser cultural e artística consistente. Porque o que se verifica, nos dias actuais, é uma dinâmica em que a cultura é uma mercadoria, mais comercial, o que é interessante. Mas é feito de forma muito pontual”.

Como tal, “penso que as pontes aéreas, ainda com poucos voos, estão a funcionar melhor que as nossas culturais. Nós, os artistas portugueses, moçambicanos, angolanos, cabo-verdianos, ainda temos muitas dificuldades”.

“Há muita necessidade da criação de programas para desenvolver as relações dos nossos países no sentido de se fazer mais intercâmbios culturais; trabalhar- se cada vez mais em redes para que se desenvolvam trocas de saber”.

Para que não se diga que, neste caso, faltam indicadores da veracidade factual, a ausência do Teatro Trigo Limpo (o grupo de português de que Zé Rui é membro – aliás, um grupo irmão do Mutumbela) no Festival Internacional de Teatro Mutumbela Gogo, alusivo às bodas de prata da maior colectividade de teatro erudito em Moçambique (havido em Novembro último) é o principal.

As suas causas estiveram associadas aos grandiosos cortes financeiros no bolo orçamental das artes em Portugal. De qualquer modo, o sentido inverso também é válido. Basta reparar que no mês seguinte – Dezembro de 2011 – se realizou um evento similar em Portugal, ao qual Moçambique não se fez presente.

Portugal cometeu um erro histórico!

A nossa (boa) nutrição em termos de informação permite-nos abordar Zé Rui, por exemplo, como uma personagem que foi um dos professores do ISArC – o segundo projecto nacional de ensino superior no campo das artes, em Moçambique – onde em 2010 foi docente, assim como pela sua relação com a região nordestina do Brasil, onde trabalhou para o desenvolvimento do teatro. As nossas páginas são reduzidas. Fica-nos aqui uma lição: “De facto, Zé Rui é um tubarão das artes com mais de 30 anos de carreira”.

Permita-se, então, que falemos dos erros históricos que Portugal – imerso na crise financeira internacional – é impelido a cometer: “encerrar a Livraria Camões, do Rio de Janeiro, no Brasil”. Trata-se de uma atitude governamental imediatamente condenada pela classe artística portuguesa.

Aliás, para esta foi “mais um golpe na cultura portuguesa no Brasil”, estamos a citar José Jorge Peralta num artigo disponível na sua página do Facebook. De qualquer modo, o nosso interlocutor leva o assunto para um campo profundo:

“Sou radicalmente contra as políticas governamentais que privilegiam só e somente só uma diplomacia económica. Ou seja, as embaixadas e outros organismos do Governo – espalhados pelo mundo – não devem ter como meta discutir as relações internacionais (dos respectivos países) só na perspectiva económica. Acho que isso é uma consequência de uma política liberal que, efectivamente, tem o dinheiro como o centro da sua atenção”.

Ora, “eu, em contra-censo a isso, defendo uma política que tenha a Pessoa como um ponto central. A diplomacia e as embaixadas são locais privilegiados para a vida cultural”. Portanto, “não concordo com o encerramento da Livraria Camões no Rio de Janeiro. Penso que isso é um grande desinvestimento cultural”.

Sobretudo porque além de o português “ser a terceira língua mais falada na Europa, ela é o idioma que possibilita a abertura do país para o mundo e as suas relações para com o mesmo. Então isso é um erro histórico, uma falha política de uma dimensão incrível”.

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