Na cidade de Quelimane há uma trupe de actores. Actores 24 horas por dia, sem salário, sem peças, sem espectadores, mas com um teatro. Pelo menos o que resta dele. E desconfio mesmo de que estes são actores sem vocação, sem casting, sem sonho de estrelato ou de fortuna repentina. Sem aparecer na TV, sem sair foto no jornal. Na cidade de Quelimane uma trupe de actores forçada habita um teatro em ruínas. E o peso deve ser grande, porque os shows são diários, o espectador pode aparecer a qualquer momento e todas as acções que são feitas aqui, neste contexto, são teatro. Eu apareci hoje.
Está sol, estou em Quelimane em itinerância com a companhia de teatro Gungu, passamos à frente do teatro, e o Gilberto, na curiosidade que lhe é própria, abranda o jipe e salta para a fachada. Está tudo completamente fechado mas não desistimos à primeira, perguntamos por ali e parece que se dermos a volta por detrás se consegue entrar.
Claro, pela entrada dos actores! Passamos um café fechado, duas casas de chapa e uma machamba, subimos os degraus de cimento meio destruídos, e abrimos a pequena porta de madeira que vai dar ao palco, espreitamos. A visão é poética.
E triste. Duas ou três famílias dividem entre si os exíguos camarins, para chegar a casa atravessam o palco, do qual só restam algumas tábuas, que se equilibram de forma precária sobre um sub-palco inundado de água – verde. Este teatro é casa destas pessoas. Os teatros são património cultural de um país. Os teatros têm estórias dentro deles, e elas vivem dentro daquele espaço mesmo depois da última representação.
Os actores que por ali passaram descansam ainda naqueles camarins, maquilham-se, riem, sentem os nervos, aclaram a voz. James Dean ainda nos olha “A Leste do paraíso”, como no dia da estreia. Um teatro tem presenças. Um teatro vazio é um espaço triste, a sensação de “fim de festa” depois de acabar a apresentação de um espectáculo é… solitária. Um teatro em ruínas é… trágico.
Eu, na coragem própria dos inconscientes, avanço pelas tábuas, a minha trupe grita, mas eu faço apenas o que vejo fazer, sigo as pisadas do mais velho destas famílias que indica o caminho quase sem falar à mulungo. Desço para a plateia e fico a olhar.
O cenário é chocante. E a cena… a cena é tão bela. Parece retirada de uma performance pós-moderna, daquelas tipo: “o teatro na vida de todos os dias”, “a dança no quotidiano”, “cenários urbanos”… mas estas pessoas vivem mesmo aqui. É impressionante e eu estou impressionada. É preciso fazer algo por estas pessoas. E pelo teatro…
Eu visito teatros com a mesma devoção com que outras pessoas visitam igrejas ou mesquitas. Com fé. E os teatros foram feitos para estar vivos! Bonitos, limpos, confortáveis e cheios, cheios de gente. Aplausos, risos e dores, tudo acontece num teatro. Nos teatros estreei-me, descobri-me, apaixonei-me, fiz amor, perdi-me…
E fui feliz e sofri com aquelas pessoas que me acompanhavam, com aquelas outras que inventava ali, naquele palco, durante aquele momento – efémero, mágico.
O teatro é lugar de partilhas, onde confessamos o inconfessável, onde assistimos ao inaceitável, onde sonhamos o impossível… E tudo está lá naquele teatro onde tudo aconteceu e em todos os teatros onde todas as paixões e ódios, tragédias e comédias aconteceram.
Vive no veludo das cortinas, nos painéis das paredes, nas cordas que levam à teia, nos telões dos cenários, nas tábuas do palco, nos estofos dos assentos, nos tecidos das roupas que vestem os actores, em cada prego e farpa da madeira.
E tudo se sente e se ouve no fosso da orquestra, nas vozes dos actores, na magia acústica do espaço… Mas lá, em Quelimane, está em ruínas. O Cineteatro Águia está a cair. E como este, muitos teatros por todas as províncias de Moçambique caem. O Kudeca, em Tete, vai ser demolido e no seu lugar vão fazer um hotel… E os actores? Os actores, os muitos actores de Moçambique, é para representarem aonde, afinal?