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Wazimbo: “Os líderes africanos esqueceram-se dos ideais das independências”

Wazimbo: “Os líderes africanos esqueceram-se dos ideais das independências”

Dois mil e treze será o ano da idade de ouro da Unidade Africana. A partir da segunda metade do século XX, o organismo estimulou a luta pelas independências do continente. No entanto, em contra-censo aos ideais originais do combate travado, meio século depois, no entender do célebre artista moçambicano, Humberto Benfica (Wazimbo), o desenvolvimento de África não passa de uma miragem. A miséria continua a reinar…

O criador de Makweru, o célebre músico moçambicano, Humberto Benfica, faz um balaço negativo sobre a celebração dos 50 anos da existência da Unidade Africana.

Para si, os líderes africanos esqueceram-se do propósito original das lutas armadas de libertação nacional. Afirma que, em África, o poder político se tornou um instrumento para o enriquecimento ilícito e individual de quem o detém. Pior ainda, da forma como os políticos africanos são obcecados pelo poder, a mudança de mentalidade não acontecerá cedo.

Por isso, neste quadro, os “jovens moçambicanos devem lutar de forma persistente e, por vezes, contundente, pelos seus direitos, se necessário”. Afinal, “só assim, é que poderão conquistar o espaço que têm por direito em relação à educação, ao emprego e, acima de tudo, à habitação, algo que em Moçambique continua problemático”.

Wazimbo fez estas e outras revelações, em entrevista amena, amistosa, rica em risadas, cedida em exclusivo ao @Verdade da qual se registam a seguir os pontos sublimais. Vale, antes, clarificar que, apesar de se referir a estes aspectos de vida política, dela diz-se distanciado. “Estou a falar das minhas percepções mediante a minha vivência quotidiana”.

Rebeldes e contundentes

“Ao designar “Os Rebeldes do Ritmo” à vossa primeira formação musical já denunciavam alguma necessidade de operar determinadas transformações socioculturais, no Moçambique da década de 1950. Em moldes similares, havendo necessidade de instigar a juventude para operar certa mudança na sociedade, que indicações daria?”. Questionamos ao que, em jeito de recordação, Wazimbo conta:

“Devo reconhecer que antes de me abordar leu bastante sobre mim. Se não leu, tem acompanhado o meu percurso atentamente. Agora, indo ao encontra da sua pergunta, recordo-me de que o que nos moveu a lutar, na época, pelas mudanças sociais de que sentíamos falta, foi o sentido patriótico que se tinha de querer que houvesse mudança no tratamento que nos era dispensado. A necessidade de, pelo menos, haver alguma igualdade.

Naquela época, a questão da igualdade de direitos e de oportunidades era um grande problema. Infelizmente, sinto que nos dias que correm os mesmos problemas persistem. Mas, mesmo assim, não se pode igualar ao que aconteceu no tempo colonial.

Por exemplo, na minha iniciação à música, as dificuldades sociais derivados do tratamento desigual entre os homens eram muito salientes, em todos os aspectos da vida em sociedade. Sobretudo porque éramos governados pelos colonos.

Em relação aos desafios enfrentados pela camada juvenil na actualidade, penso que os jovens devem continuar a lutar pelos seus direitos de uma forma persistente e, por vezes, contundente, se for necessário. Só assim, poderão conquistar o espaço que têm por direito em relação à educação, ao emprego e, acima de tudo, à habitação que é uma dificuldade sempre presente”.

@Verdade: Todo o mundo desempenhou algum papel pela libertação. Onde os músicos encontravam fôlego para superar as di ficuldades que se lhes impunham?

Wazimbo: O que sucedia é que simultaneamente à luta travada pelos políticos, no sentido de se conquistar a independência, os artistas desenvolviam combates paralelos com o mesmo foco. Todos os esforços nacionais convergiam para o mesmo ideal.

É certo que, por diversos motivos, nem todos poderiam pegar em armas e lançarem-se em confl itos armados. Alguns não reuniam condições para abandonar o país e ir à guerra.

Recorde-se que não nos faltam exemplos de artistas que lutaram pela liberdade e independência, mesmo sem pegar em armas. Personalidades como José Craveirinha, Malangatana, Noémia de Sousa, Rui Nogar, entre outros, denunciaram as maldades do colono através das suas criações e acções artísticas.

Nós, os músicos, não podendo trazer a nossa música a tradicional moçambicana à ribalta, porque nos era vedada a possibilidade de nos expressarmos nas nossas línguas, na nossa cultura, fazíamo- lo de forma camuflada.

Interpretávamos a música norte-americana, a inglesa, assim como a portuguesa. Em certo sentido, isso beneficiava-nos porque era uma aprendizagem. Até porque cantar em inglês, francês ou mesmo em português requeria algum domínio da língua. Por isso, ao cantar nessas línguas, contrariamente às ideias adversas que os colonos criavam sobre os africanos, nós, jovens músicos moçambicanos, revelávamos que éramos capazes.

Éramos versáteis na interpretação da música internacional em diversas línguas, particularmente em português. Isto fazia com que eles, enganados, nos tivessem como bons rapazes. Urge a mudança de mentalidade

@Verdade: Pela idade que Wazimbo e os seus companheiros possuem, pode-se deduzir que testemunharam quase todos os períodos (particularmente) interessantes da história de África do século XX. Falo, por exemplo, da OUA (1963), das nacionalizações, das independências, incluindo a Guerra Fria que mais tarde se instalou no mundo. Como olha para o continente africano 50 anos depois?

Wazimbo: Penso que os líderes africanos precisam de mais 50 anos para mudarem de mentalidade. Ou melhor, precisamos de mais três gerações para que se mude a forma como se pensa a governação em África. Percebo que os nossos líderes possuem um problema comum e grave, “a corrupção”.

É verdade que lutaram pelas independências. E, depois de muito sangue derramado, conquistaram as independências. Mas, analisando o estágio actual de África, 50 anos depois, percebe-se que está muito aquém das expectativas cridas na época.

Por isso, a minha compreensão é de que os actores políticos em África estão mais preocupados em criar riqueza própria em detrimento do desenvolvimento dos países.

Se eles fossem pessoas que olham para a real situação do país, e dentro da inspiração libertária das décadas 50/60 nós, os moçambicanos, por exemplo, apesar de sermos uma nação jovem, estaríamos em melhores condições de desenvolvimento sociocultural e económico. Estou convencido de que caso logo, no início, tivesse havido a preocupação de desenvolver o país, muitos aspectos sociais estariam em patamares cimeiros.

Ora, em contra-censo a isso, a sua preocupação foi a criação da riqueza individual. O mais preocupante é que esta é uma situação generalizada. Não se restringe somente a Moçambique ou a Angola. Digamos que (em quase todo o continente) esta forma de governar se tornou a mais dominante.

A primavera árabe, por exemplo, é uma crise que se apoderou do norte de África denunciando que algo estava anormal. Na questão da divisão da riqueza em África não há meio-termo. Uns são muito ricos, outros são (simplesmente) pobres. Com este cenário, o que é que se podia esperar além de revoltas?

Cada um por si e Deus por todos

@Verdade: O que é que corrompeu os ideais africanos da unidade para o desenvolvimento se se tomar em consideração que se havia pensado inclusive na criação dos “Estados Unidos da África?”

Wazimbo: Não sei se essa ideia, “a criação dos Estados Unidos da África”, será resgatada porque o seu mentor, Moamar Khadafi, foi deposto acabando morto. Não sei se nós, os outros, temos algum interesse no mesmo sentido.

Sinto, porém, que neste momento, as lideranças africanas estão naquela de “cada qual por si e Deus por todos”. Enquanto eu, dirigente, estiver no poder vou fazer o máximo no sentido de criar a minha estabilidade económica e social. Um país europeu no coração de África

@Verdade: Que imagens, memórias, retêm dos concertos que realizou nas Ilhas Reunião?

Wazimbo: Nunca antes eu tinha travado uma conversa com alguém que tivesse passado pelas Ilhas Reunião. Por isso, quando cheguei às Iilhas Reunião, não tinha ideia da realidade local. Mas a minha surpresa, que também foi dos outros músicos, chegado ao destino, teve a ver com a impressão de que não estava em África.

E mais, compreendi as razões que moviam os populares daquele país a considerarem-se europeus. As Ilhas Reunião têm uma estabilidade económica invejável. Senti que estava num país europeu em África. Tudo – a administração pública, a gestão municipal, os restaurantes – é impressionante. Fiquei quatro dias, nos quais não me foi possível ouvir uma buzina de carro a tocar.

Voltei das Ilhas Reunião sem ter visto mendigos. Vi apenas um, no restaurante em que fomos acolhidos. Mas o tratamento que lhe foi dispensado era algo para qualquer pessoa mudar a sua mentalidade. Todos nós, os que vínhamos de Moçambique, ficámos impressionados. Afinal, se fosse no nosso país, aquele mendigo devia ter sido enxotado. O normal era que se encontrasse a alguma distância de nós e/ou ao pé de um caixote de lixo, o que lá não aconteceu.

Ele estava, num meio social, connosco, na cantina do restaurante, sendo tratado devidamente como gente que é. Recebeu o carinho das pessoas. Isto saltou à vista de todos nós. E concluímos, então, que nas Ilhas Reunião, quando (os nativos) se dizem europeus têm a sua razão. A mentalidade é outra!

@Verdade: Foi um projecto que visava reforçar a cooperação e intercâmbio cultural entre os países. Em que pé está a cooperação cultural?

Wazimbo: Mais uma vez vou repetir que não sou político. Nem gosto de política. Por isso, é bom que fi que claro que estou a retratar aquilo que é a minha compreensão. Penso que o único momento em que o intercâmbio cultural entre os povos africanos se fazia valer foi durante a governação de Samora Machel.

Desde aquela época para cá, nada mais se fez. Eu, por exemplo, conheci a Alemanha do Leste no âmbito deste intercâmbio cultural. Se mais adiante me desloquei a outras regiões do mundo foi por mérito próprio.

De qualquer modo, quero testemunhar que muitos companheiros meus, designadamente João Cabaço, Hortêncio Langa, Arão Litsure, a CNCD, entre outros, foram parar aos diferentes quadrantes do mundo através de intercâmbios culturais que eram fortes e persistentes naquela altura.

Depois da morte de Samora Machel muito pouco tem-se feito sentir. Eu não sei o que é que os adidos culturais têm feito nas diversas embaixadas moçambicanas espalhadas pelo mundo.

Projectos

@Verdade: Recordo-me de que, em certa ocasião, Wazimbo lamentou o facto de não ter publicado muitos trabalhos discográ cos a solo ao longo da carreira. Haverá algum projecto neste sentido?

Wazimbo: De facto, era minha pretensão publicar mais um álbum a solo. Mas como sou líder e porta-voz do Grupo da Rádio Moçambique, por um lado, e havendo a necessidade de produzirmos um trabalho discográfico para a banda, passei todo o ano passado concentrado nessa produção.

A obra já está praticamente concluída. Faltam-nos apenas alguns itens, como, por exemplo, a conclusão da capa, a produção do videoclipe, bem como a masterização. Em termos de gravação no estúdio, o disco já está materializado.

Se tivéssemos tido meios e condições, o trabalho devia ter sido publicado nas festas do Natal passado, como brinde para os apreciadores da boa música moçambicana. Ainda estamos a procurar apoios no sentido de finalizarmos os aspectos que faltam. Penso que, se tudo correr a contento, até finais de Fevereiro o disco já estará no mercado.

No grupo quase todos andamos ocupados com outras questões, por isso ainda não escolhemos o título para a obra. Ela terá 10 faixas e será ofertada e dedicada ao nosso companheiro Sox (1953 – 2011) que encontrou a morte em Julho. Uma vez concluído o trabalho colectivo, este ano quero concentrar-me na produção do disco a solo.

@Verdade: No ano passado Wazimbo foi, na companhia dos demais artistas, agraciado e proclamado lenda da canção moçambicana. Como se sentiu?

Wazimbo: Senti-me valorizado. Tive a sensação de que o meu trabalho não foi em vão. E, sobretudo, que gozo do carinho e respeito da sociedade. O mais importante é que tive a impressão de que tal carinho foi dispensado do fundo do coração, apesar de estar consciente de que existem algumas pessoas que me dão algumas “palmadas nas costas” e não passa disso.

O outro aspecto de que me dei conta é que Moreira Chonguiça é um moço que guarda um respeito bastante profundo e verdadeiro pelas pessoas. Daí que tenha criado condições para que este álbum fosse produzido. O trabalho teve a sorte de ser considerado o melhor do ano 2011 na África do Sul.

Então, tudo isso acompanha a valorização de que estava a falar. Significa que não somente são os moçambicanos que acarinham e valorizam o trabalho que a gente faz. Isto é importante e salutar. Dá-me confi ança para poder continuar a trabalhar. Sobretudo porque descobri que estou no caminho certo.

@Verdade: Para terminar…

Wazimbo: Gostaria de ver, na área cultural, o calendário preenchido em todas as efemérides, projectos e eventos. Já devíamos ter algum documento (antecipadamente produzido no ano passado) que nos indique claramente o que será realizado no âmbito cultural em 2012. Porque é assim que funciona no mundo.

Na Europa, já se sabe o que é vai acontecer em termos de programação cultural no próximo Verão. As contratações foram feitas antecipadamente. Agora espera-se apenas o tempo para a concretização dos eventos.

Seria bom que o meu país funcionasse da mesma forma, porque não é difícil. O outro aspecto é que as nossas actividades precisam de começar a ganhar vulto. É verdade que a cidade de Maputo é a capital, mas não precisamos de concentrar tudo nela. Devemos expandir a vontade de fazer as coisas acontecer em todo o país.

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