Há três anos a Assembleia da República aprovou a Lei 29/2009, lei sobre violência doméstica, com grande pompa e circunstância, no seio de gritos de júbilo. A lei visava, entre outros, tornar a violência doméstica um crime público (onde qualquer um pode denunciar) e prever sanções específicas contra os perpetradores.
No entanto, passados 3 anos, pouco ou quase nada é falado publicamente sobre as consequências da lei 29/2009 sobre a sociedade moçambicana. Seria importante que pelo menos os que tomaram a dianteira na aprovação da lei estivessem a fazer a sua monitoria, com vista à sua implementação efectiva, quiçá o ponto de situação em relação à taxa de incidência (dados que mostrem o aumento ou diminuição dos casos).
Ainda que sem um levantamento geral, dados isolados indicam que os casos de violência, sobretudo doméstica, contra a mulher ainda têm incidido sobre várias famílias moçambicanas, sendo, inclusive, perpetrada por entidades que deviam ser implementadoras da lei (polícias sobretudo).
Falar sobre Violência Baseada no Género em Moçambique é falar sobre violência contra a mulher e a rapariga, se tivermos em conta que elas constituem os grupos mais vulneráveis a todos tipos de violência, perpetradas quer pelos seus parceiros/parentes, quer por desconhecidos. Quando a violência ocorre no espaço doméstico, é considerada violência doméstica, que constitui um dos temas preocupantes a nível mundial em geral, e nacional em particular.
Desse modo, expressões como “violência doméstica” e respectivas subdivisões fizeram levantar muitas vozes no seio da sociedade moçambicana e a adopção de uma lei que punisse os “infractores” seria considerada como abusiva e promotora de desobediência da mulher face ao homem, e consequente desestruturação da “ordem familiar” herdada pelos ancestrais.
Ainda assim, várias vozes, sobretudo de algumas organizações da sociedade civil que actuavam na área da mulher e direitos humanos, sob intensa pressão e “luta” contribuíram para que o Governo de Moçambique criasse uma lei que pudesse reduzir e, quiçá, pôr termo à impunidade face a situações de violência contra a mulher.
Tal luta culminou com a aprovação da Lei 29/2009. Os gritos de júbilo que se fizeram ouvir aquando da aprovação não parecem ter sido subsequentemente acompanhados por uma monitoria consequente. As organizações que tanto lutaram para se aprovar a lei parecem ter-se contentado apenas com o acto da aprovação.
A lei contém várias provisões que, a priori, subentende-se, obrigam o Estado a prover certos serviços no âmbito da sua implementação. Por exemplo, não existem no país casas de abrigo para que as vítimas da violência doméstica possam lá permanecer enquanto são criadas condições para a sua reintegração social, através de apoio psicológico e empoderamento, para que elas possam ter uma vida mais saudável e confiante, com noção dos seus direitos e potencialidades.
No entanto, as causas da não implementação efectiva da lei podem ser de vária ordem, a destacar as seguintes:
- Falta de divulgação da lei 29/2009, o que dificulta que as mulheres conheçam os seus direitos e lutem por eles. A disseminação é feita maioritariamente nas zonas urbanas, onde, inclusive, habitam pessoas que têm acesso a vários órgãos de informação;
- Resistência a mudanças: a permanência de práticas alegadamente culturais tais como agredir para educar, acabam por perpetuar a reincidência de casos de violência contra a mulher, colocando-a sem auto-estima, isolando-a da sociedade;
- Fraco mecanismo de controlo da implementação da lei, incluindo uma rígida punição dos perpretradores e divulgação de tais punições.
No entanto, é de saudar a contribuição, ainda que reduzida, de denunciantes a nível das comunidades, com cada vez mais vizinhos, autoridades locais (chefe do quarteirão, secretário do bairro) trabalhando com a polícia no sentido de denunciarem a violência doméstica (geralmente a física, mais fácil de ser notada).
Tal facto acontece sobretudo em regiões onde a disseminação de informação está a ser efectuada de forma constante, e parte de algumas organizações da sociedade civil que actuam na área da violência, bem como pelo Ministério da Mulher e da Acção Social.
Posto isto, recomendo que se tenha em conta o seguinte:
- Maior disseminação da lei sobre violência doméstica praticada contra a mulher, desde as zonas urbanas até aos locais mais remotos, acompanhado por acções de empoderamento da mulher. No entanto, é importante que se conte com muita participação masculina, de modo que se possam inteirar das vantagens que poderão advir de um clima pacífico, onde os direitos humanos sejam respeitados, ambos possam trabalhar e melhor suprir as necessidades do lar;
- Implementação do Mecanismo Multissectorial de Atendimento Integrado à Mulher Vítima de Violência, recentemente aprovado pelo Governo moçambicano visando a coordenação e padronização de serviços de apoio e protecção à mulher vítima de violência, prestado pelo Centro de Atendimento Integrado (a ser criado) e pelos sectores oficiais policiais, médicos, legais e sociais.
Prevê-se a partir deste mecanismo criar uma ficha única para evitar que haja omissão ou duplicação de dados, e permitir maior flexibilização na resposta ao atendimento da vítima de violência. No entanto, este mecanismo não clarifica de modo detalhado o papel da sociedade civil, pois coloca o Governo (conhecidas as suas limitações financeiras) como o principal implementador.
Revisão do código penal, que se prevê que corresponda à realidade actual e esteja em sintonia com a lei 29/2009 e demais instrumentos de promoção e defesa dos direitos das mulheres.
Apesar de a aprovação de instrumentos contra a violência ser salutar, é importante que se levem a cabo acções paralelas de monitoria e divulgação dos dados sobre incidência e respectivas localizações, na medida em que as organizações da sociedade civil, sobretudo as que trabalham na área da mulher, pudessem estar em condições de saber em que zonas devem actuar com maior/menor intensidade, sob o risco de acções de sensibilização estarem a decorrer mormente nos mesmos locais.
É óbvio que sem uma pressão das organizações da sociedade civil o Estado poderá não ver a provisão de tais casas uma questão prioritária, sobretudo porque existem muitas outras prioridades que clamam pela sua atenção.