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Viver (já) com o destino traçado

Viver (já) com o destino traçado

O fim do contrato com as Irmãs Hospitaleiras transformou o Infantário da Matola num lugar onde viver é insustentável, para generalidade dos residentes. O motor desta insustentabilidade é o incipiente apoio do Estado, a ausência de meios e pessoal especializado, que tem colocado as crianças numa situação cruel. @Verdade fez uma visita e auscultou responsáveis e organizações sem fins lucrativos que apoiam a instituição e ninguém falou de esperança para aqueles 63 seres. O pessimismo foi a nota dominante.

Nos dias que correm, em que a sociedade está a perder os seus mais elementares valores e regras, ser portador de deficiência começa a ser o mesmo que ser inútil.

É uma realidade muito triste de se aceitar, mas é o que muitos que se encontram nesta situação vivem, e as 63 crianças do Infantário da Matola, em particular. São crianças que têm direitos como qualquer uma, apenas necessitam de mais cuidados e uma educação especiais.

Na verdade, nem todas são crianças, elas apenas constituem a maior parte. O grupo é também constituído por adolescentes e jovens.

Diferentemente dos outros centros, o Infantário da Matola foi concebido para receber crianças (com características) especiais: portadoras de deficiência e de outras anomalias, cujas causas podem ser várias, dentre as quais os partos prematuros, a malária cerebral, problemas genéticos, malformação congénita.

Elas sofrem de deficiências múltiplas, umas não falam, não ouvem e outras são tetraplégicas. Foram essas as condições que fizeram com que os seus progenitores e/ou responsáveis os abandonassem nas ruas e nos hospitais sem ao menos darem a cara. Aliás, pessoas como estas raramente assumem os seus actos.

Sob tutela da Direcção Provincial da Mulher e Acção Social de Maputo (DPMAS), o centro foi concebido para acomodar 45 crianças mas, devido ao aumento de casos de abandono de crianças e à inexistência de um centro para adultos, tem sob seus cuidados 63, o que demonstra o quão alarmante se está a tornar a falta de sensibilidade e humanismo no seio da (nossa) sociedade. “Temos dificuldades em os acomodar.

A capacidade do centro há muito que foi ultrapassada. O que nos falta não é o espaço, mas sim o mobiliário. Alguns têm de partilhar a cama”, revela a responsável, Lucinda Custódio.

O centro foi construído no tempo colonial e em 2004 benefi ciou de obras de remodelação fi nanciadas pela Cooperação Portuguesa.

Após as obras, a instituição ficou sob gestão das Irmãs Hospitaleiras, cujo contrato terminou no dia 30 de Setembro deste ano, o que é o prenúncio de que tempos duros se aproximam pois o centro só funciona com fundos do Estado.

O infantário possui três dormitórios (masculino, feminino e para cadeirantes), lavandaria, sala de fi sioterapia, um pavilhão e uma carpintaria, mas ainda se debate com a falta de fundos porque as suas infra-estruturas não estão a ser exploradas. Devido à sua condição, este grupo inspira muitos cuidados, daí não ser tarefa fácil para os 43 trabalhadores. Eles trabalham em turnos pois algumas crianças têm de ser levados à casa de banho para fazerem necessidades ou mesmo para se vestir. Por isso os dormitórios têm um quarto onde a mãe de casa (como eles chamam) se acomoda.

Medicamentos: a principal dificuldade

Para instituições desta natureza, ter difi culdades não constitui novidade. Mas quando estas se ressentem da falta de bens essenciais e indispensáveis para a prossecução dos objectivos para as quais foram criadas, a situação torna-se preocupante.

O Infantário da Matola não podia ser uma excepção. O mesmo debate-se com a falta de medicamentos, não porque não tenha verbas para a sua aquisição, mas porque estes não existem no Sistema Nacional de Saúde, o que obriga os responsáveis daquela instituição a adquiri-los nas farmácias privadas.

Mas o rol de dificuldades não termina por aqui. A existência de crianças tetraplégicas levou a que o infantário transformasse um dos seus cómodos em sala de fisioterapia, o que representa(ria) uma esperança para os petizes que precisam de desenvolver ou melhorar a função locomotora e, por via disso, deixarem de depender das cadeiras de roda.

O problema é que o infantário não possui um fi sioterapeuta. O material de fi sioterapia há muito que foi adquirido mas ainda não foi usado. De acordo com a responsável, “algumas crianças já estariam a andar se tivessem sido submetidas a sessões de fi – sioterapia. Eles conseguem fi car em pé, mas não por muito tempo, só precisam de um estímulo e de um acompanhamento (sensorial) ”.

No meio destas crianças, existem algumas que vivem deitadas, não conseguem se mexer, o que fez com que as suas cadeiras fossem adaptadas às suas características.

Outras simplesmente não param de chorar ou de arranhar quem por eles passa. Essas exigem um acompanhamento permanente devido aos ferimentos que elas podem causar com os seus arranhões.

O centro não só tem falta de um fisioterapeuta, mas também de um terapeuta de fala. Muitos conseguem balbuciar algumas palavras, mas não conseguem distinguir os objectos, expressar as suas vontades, cumprimentar as pessoas, e muito mais.

Para um infantário deste género, o Estado devia alocar uma equipa de especialistas (em regime de exclusividade) tais como fisioterapeutas, terapeutas, psicólogos, médicos genéricos, etc), mas como em qualquer sector da nossa sociedade, somos obrigados a viver com limitações. Em relação psicólogos, a Direcção Provincial da Saúde tem mandado uma equipa semanalmente, embora estes não apareçam regularmente.

Ademais, a verba que o infantário recebe do Estado não chega nem para garantir a assistência sanitária daquele grupo. “Quando eles adoecem, temos de os levar ao centro de saúde e a verba que recebemos não basta”.

Ementa pode ser alterada devido à falta de condições

As limitações com que o infantário vive, aliadas ao “vazio” deixado pela Cooperação Portuguesa (que o geria desde 2004), levam a nova direcção a afi rmar que a ementa será alterada oportunamente pois não tem capacidade para suportar a actual, composta basicamente de frango, peixe, feijão e verduras. Actualmente, o infantário oferece duas refeições por dia: o almoço e o jantar, servidos às 11.30 e às 17.30, respectivamente.

As refeições são servidas em dois grupos, com diferença de meia hora: o primeiro, que se alimenta de líquidos, e o último que se alimentam normalmente. “Isso obriga-nos a preparar dois pratos porque se trata de dois grupos diferentes”, diz a responsável.

O gás, principal combustível usado pelo infantário para a confecção dos alimentos, constitui um dos seus “calcanhares de Aquiles”. Por mês, são necessárias mais de quatro botijas de 100 quilogramas cada, o que não é fácil. O gás está caro e nós não contamos com nenhum apoio, fora o do Estado”.

Infra-estruturas subaproveitadas

O pavilhão e a carpintaria que o infantário possui estão votados ao abandono. Segundo a responsável, Lucinda Custódio, “a carpintaria não está a ser explorada porque não há material. Em relação ao pavilhão, este pode ser usado para a criação de frangos, produção de ovos, mas não temos condições para pô-lo a funcionar”.

Para além do pavilhão e da carpintaria, o infantário tem um enorme terreno que era usado para a prática da agricultura, na altura em que este estava sob gestão da Cooperação Portuguesa. Hoje, o capim tomou conta do espaço e o tractor agrícola que fora adquirido encontra-se avariado.

Estes meios e infra-estruturas podem muito bem aliviar a situação financeira em que a instituição se encontra, ou ao menos reduzir a dependência desta em relação ao Estado. Isso (só) pode ser alcançado se os mesmos forem rentabilizados.

Aliás, as infra-estruturas podem servir de fonte de receita e, por via disso, tornar infantário mais autónomo, no que diz respeito à dieta alimentar.

Viver de aparências…

No dia em que a nossa equipa de reportagem se deslocou ao infantário, na companhia de membros da S.O.S MOZ- Ajuda Moçambique (uma associação se fi ns lucrativos), as crianças estavam limpas, bem vestidas e os cómodos estavam todos limpos e arrumados.

A impressão com que ficámos foi de um local bem conservado e com todas as condições para acolher pessoas com aquelas características.

Por conhecer a realidade das nossas instituições e das pessoas que as dirigem, fizemos uma “visita relâmpago” três semanas depois e a realidade que encontrámos foi diferente da do dia da primeira visita. O único aspecto que não tinha mudado é o da limpeza: há que reconhecer que o infantário é uma referência nesse aspecto.

Quando lá chegamos, das 63 crianças que vivem, naquele local, apenas seis é que estavam no pátio. As restantes estavam trancadas nas varandas das casas, completamente fechadas e algumas sem janelas.

Um cenário de reclusão!

Numa das casas, deparámo-nos com crianças sujas, e uma delas com marcas de quem tinha sido espancada e com uma ferida no braço, cuja ligadura já tinha perdido a cor (branca).

Muitas delas têm as unhas grandes e sujas, sinal de que a higiene destes não é das melhores.

“É preciso ocupá-las para que possam se sentir úteis”, afirma José Ferrão

José Ferrão, psicólogo, considera que as condições existentes no infantário são boas mas não sufi cientes.

“É preciso ter uma equipa de especialistas a trabalhar em prol destas crianças. Não basta lavar a roupa, dar de comer, oferecê- -las um tecto e pensar que é tudo”.

Em relação à sua ocupação, este especialista diz que o mais importante é fazer com que elas se sintam úteis, “mas para tal é preciso ensiná-las a fazer algo.

Algumas podem cuidar da horta, ajudar na limpeza ou mesmo trabalhar na carpintaria”, concluiu.

Por seu turno, a directora executiva da associação S.O.S- Moz, Ana Delgado, afi rma que a actual direcção precisa de uma formação no que diz respeito aos cuidados a ter com deficientes e a higiene.

“Depois da primeira visita, na qual fi zemos uma doação, o nosso plano é dar formação ao pessoal do infantário nas áreas de primeiros socorros e, se possível, mandarmos especialistas para o infantário. Alguns já mostraram vontade para tal”.

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