Apinhados em sete carruagens – como trouxas – e com todo o tipo de negócios à mistura, os passageiros são obrigados a viajar de pé durante pelo menos 10 horas. Bem apertados e num calor escaldante, diga-se, é assim que, num verdadeiro tormento, centenas de moçambicanos se movem de Nampula a Cuamba, e vice-versa, quase todos os dias na terceira classe perante a indiferença das autoridades.
Ainda não são 4h30 da manhã – o horário de partida do comboio – e a estação do Corredor de Desenvolvimento do Norte (CDN) encontra-se apinhada de gente. Há pessoas de diferentes idades espalhadas por todos os lados, uns sentados e deitados no chão e outros encostados na vedação, mas partilham o mesmo propósito: viajar de comboio.
Ainda é noite, mas o céu vai ganhando tons azuis e quatro enormes e infindáveis filas (na verdade, não são filas mas amontoados de gente) sobressaem aos olhos. A primeira é composta por pessoas que pretendem adquirir o bilhete para a viagem, a segunda é constituída por mulheres e, a terceira, por homens que impacientemente aguardam pela abertura doportão que dá acesso ao recinto onde se encontra o comboio. A última fila é de um contingente militar.
Para ocupar um dos primeiros lugares da fila, grande parte dos passageiros teve de passar a noite no recinto da estação. “É difícil conseguir um lugar no comboio, a não ser que se chegue bastante cedo. Vou para Cuamba com a minha família, moramos longe da cidade e, por isso, tivemos de pernoitar aqui”, afirma Joaquim Murrupa.
Há também quem venha cedo por outro motivo. “Ontem não pude adquirir a passagem, pois quando cheguei a bilheteira já se encontrava fechada e, por esta razão, decidi dormir aqui”, diz Gabriel Manuel Ali, sentado por cima da sua bagagem.
Falta um quarto para as 4hoo da manhã.O portão é aberto e os seguranças do CDN organizam as pessoas e fiscalizam para confirmar que todos nas filas dispõem de bilhetes. Os primeiros a entrarem nas carruagens são as crianças e mulheres, que se lançam como um enxame, e, depois, os homens.
Meia hora mais tarde o comboio já está lotado. Outras centenas de pessoas que não conseguiram obter a passagem estão do lado de fora. Mas o grupo de soldados é privilegiado, ocupando dois vagões, o que obrigou o povo a estar mais apertado do que já estava.
Não há indicação da lotação nas carruagens, mas em cada uma delas vão mais de duas centenas de pessoas. Apertados e uns quase a caírem em cima dos outros, os passageiros agarram-se ao que podem.O comboio já está em movimento, porém, ninguém se queixa ou reclama e tão-pouco revela estar preocupado com as condições em que são transportados. Até porque, para os viajantes, o que mais importante é chegar ao destino.
Volvidos 20 minutos, o comboio abranda na primeira estação para levar outros viajantes. E outras dezenas de mulheres, com bebés nas costas segurados por capulanas, e homens carregando bagagens entram na locomotiva. Não há espaço.“Já não há lugares, mas mesmo assim deixam subir outras pessoas, enquanto não permitiram viajar outras dezenas na estação principal”, comenta um passageiro.
O fiscal, com a ajuda de um segurança, tenta arrumar as pessoas de modo a que caibam mais no comboio. “Senhora aí encosta mais para o canto. Papá aqui retira a mochila das costas e coloca depois da cadeira. Diga a esse jovem aí para afastar mais para a frente para esta moça de blusa preta poder ficar de pé aí ao lado”, ordena.
Ganhar a vida no comboio
No interior, nem todos são passageiros. Algumas pessoas aproveitam para ganhar a vida, vendendo lugares para os que viajam de pé. Com embrulhos e certa astúcia, ocupam uma cadeira concebida para três pessoas.Diante da indiferença dos fiscais, cobradores e segurança, perscrutam os viajantes e o preço varia consoante o destino.
Para os que vão até ao município de Cuamba, província de Niassa, o assento é vendido a 75 meticais – refira-se que o bilhete de Nampula para aquele ponto do país custa 135 na terceira classe.Mas eles preferem ceder por duas horas ao valor de 20 meticais e no fim da viagem amealham, em média, 500.
Ismael tem 26 anos de idade e dedica-se a essa actividade há quatro meses. O seu investimento em cada viagem é o preço da passagem: 135 meticais. É, no seu entender, um negócio lucrativo. “Até ao destino junto pelo menos 600 meticais, é a única forma que encontrei para ganhar o sustento da minha família”, conta.
Pai de dois filhos e vivendo maritalmente, quase todos os diaso jovem dorme no portão da estação para ser o primeiro a entrar no comboio e ocupar uma cadeira. “Mas nem sempre é fácil ser um dos primeiros da fila porque, além de mim, existem outras pessoas que fazem esse trabalho”, diz.
No corredor, passam à rasca senhoras, e não só, com trouxas na cabeça à procura de lugar para se sentarem e não encontram. Sem dinheiro para pagar um assento para toda a viagem ou por duas horas, a solução é suster-se sobre os tubos de metal que servem para guardar as bagagens. Mas, muitas vezes, o cansaço fala mais alto. O mais impressionante é que no comboio ninguém comenta ou lamenta essa prática que a cada dia que passa vai ganhando o rosto da normalidade.
Emília Amade, de 28 anos de idade, viaja há mais de cinco horas de pé. Com um bebé no colo, ninguém lhe oferece um lugar. É como se ela não existisse naquele mundo, e nos bancos concebidos para três agora encaixam-se quatro indivíduos. Mesmo assim não há lugar para ela e o seu filho com menos de seis meses de vida.
“Já custa caro subir o comboio e ainda temos de pagar para sentar. Vinte meticais para ficar sentada apenas durante duas horas é muito, se eu retiro esse dinheiro não terei o que comer ao longo da viagem”, afirma.
Este é o drama por que muitas crianças, mulheres e adultos passam no comboio Nampula- -Cuamba diante da indiferença – também insensibilidade – dos jovens e homens que fingem dormir somente para não cederem o seu lugar. A apenas três horas do destino, Emília conseguiu um espaço para se sentar. Foi um grande alívio, pois não se aguentava de cansaço.
À semelhança de Emília, está também uma senhora – aparenta mais de 30 anos de idade – que viaja de pé há mais de cinco horas com uma criança nas costas e no braço uma menina. Porém, não teve a mesma sorte. Sem dinheiro para obter um lugar, teve de viajar com o filho preso com capulanas aproximadamente 12 horas.
Além do negócio dos assentos, também o comércio informal ganha a vida no interior formando um mercado ambulante onde se vende quase de tudo, desde caldo de cozinha, panelas e capulanas, passando por brinquedos, DVD’s e pilhas, até refrigerante, bolachas e pão.
Como se não bastasse viajar de pé, os passageiros são obrigados, de dois em dois minutos, a apertar- se ainda mais nos corredores do comboio para dar passagem aos vendedores ambulantes que, carregando os seus produtos, vão procurando potenciais clientes. Ouvem-se murmúrios entrecortados por vozes dos jovens comerciantes: “Tenho refrescos e água”, “capulanas, duas 200 meticais”, “caldo, caldo”, e assim por diante. “Estou a pedir uma sprite”, grita rapariga encostada à janela.
Há aproximadamente um ano que Edson Celestino, de 23 anos de idade, faz do comboio o seu posto de trabalho. Vive em Cuamba, sua terra natal, mas a sua vida é dividida entre esta cidade e Nampula. Ele compra refrigerantes, sumos e iogurtes para revender ao longo da viagem. “É assim que sustento a minha família”, diz.
Por dia, em média, Edson factura 1500 meticais. Tem a renda de casa por pagar e um agregado familiar constituído por quatro pessoas a quem garantir o sustento diário. “Não há emprego em Cuambanem em Nampula e esta é a única solução que encontrei para ganhar dinheiro de forma honesta”, afirma.
Ao contrário de Edson, Joaquim Vicente, ou simplesmente Quito, de 27 anos de idade, trabalha para terceiros. Vende capulanas, brinquedos e pilhas e ganha 20 porcento da receita diária. Dedica-se a essa actividade há dois meses.
“Não tinha emprego, apenas vivia de biscates em Nampula para sustentar a minha família”, conta. Mas, graças a um amigo, conseguiu uma ocupação que permite pagar a renda de casa e comprar comida e roupa para a esposa, o filho do casal, e uma sobrinha.
Natural do distrito de Ribuaé, província de Nampula, Quito vive em Cuamba, cidade onde chegou quando procurava emprego. Hoje, em média, o seu rendimento diário é de 500 meticais. “O negócio é muito bom, pois graças a ele já comprei muitos bens e estou a construir as minhas próprias casas, uma em Cuamba e outra na minha terra”, afirma.
O seu maior constrangimento é ser ele próprio a custear a sua estadia na cidade de Nampula, e não só. “O meu patrão paga apenas a passagem e o resto fica sob minha responsabilidade. Às vezes, temos de subornar os seguranças e fiscais para podermos desenvolver a nossa actividade à vontade aqui no comboio”, diz
Uma viagem, um martírio
Viajar de comboio de Nampula a Cuamba e vice-versa na terceira classe não é apenas uma simples jornada, mas um verdadeiro martírio, um desrespeito à dignidade humana.
Os passageiros têm de sobreviver a tudo: empurrões e resistir ao cansaço, além de partilhar o espaço com sacos de tomate, cebola e milho, cana-de-açúcar, bananas, entre outros produtos. E ninguém se pode queixar em caso de ser empurrado ou pisado, pois a reacção é automática e surge em forma de uma pergunta: “Porque não vais na carruagem de segunda classe?”.
Mas o grande drama não é viajar apertado, mas sim a falta de casas de banho. Os compartimentos onde outrora funcionavam, agora acolhem pessoas que não conseguiram apinhar-se no interiordas carruagens. As necessidades, tanto a maior como menor, são feitas quando o comboio abrandar.
O risco de ser deixado em terra é enorme, pois a paragem não leva mais de cinco minutos. E o mais caricato é que, para quem se encontra no meio do amontoado de gente, precisaria de pelo menos cinco minutos para descer. Por essa razão, é frequente ver-se passageiros a correr atrás da locomotiva.
Durante a viagem, as pessoas falam de quase tudo – do preço alto dos produtos vendidos nas estações, dos militares que ocupam duas carruagens, das paragens demoradas do comboio, do tempo e da vida, mas ninguém comenta sobre as (péssimas) condições em que são transportados. Aos passageiros, a enchente parece normal.
“Até que não está assim muito mau. Não queiras viajar na época de férias escolares, isto fica irrespirável”, diz Ismael, o jovem que me vendeu um lugar depois de quatro horas a viajar de pé.
A fim de saírem e entrarem outros passageiros, foi necessário proceder-se a 20 paragens. A cinco horas do destino, a locomotiva registou uma paragem de aproximadamente uma hora devido a um problema mecânico.
Sem nenhuma informação do que se estava a passar, os passageiros abandonaram as carruagens e, instantes depois, a situação foi resolvida. Quando o relógio marcava 17h05, o comboio apitou três vezes, assinalando o fim de um martírio a que, de terça a domingo, os moçambicanos são submetidos.