Toda a gente sabe, ou se não sabe devia saber, que o meu maior temor é a morte. Não me venham com a história de que ela é algo natural, pois não é. Cá por mim, isso não passa de injecções momentâneas de ânimo aplicadas pelos psiquiatras/psicólogos e fervorosos religiosos de muito mau gosto.
Porque se a morte fosse tão natural como se diz que é, os funerais seriam alegres tal e qual as festas de aniversário, aliás, aquando da morte de Lázaro, o Filho de Deus diria: “Não se preocupem amados, a morte é algo natural”. Pelo contrário, Ele ficou triste, chorou (e muito), e ressuscitou o seu melhor amigo e também fez o mesmo em relação ao filho de Jairo, ao filho da viúva de Naim, entre outros. Repudio a morte desde tenra idade e agora, prestes a completar os meus 50 anos de vida, só de pensar que um dia deixarei de existir fico conturbado. Por esta razão, detesto viajar – não importa o meio de transporte – pois temo que a morte, travestida de acidente, me encontre desprevenido.
Na verdade, gosto é de andar a pé, pois sei que as probabilidades de vir a sucumbir são menores. Faço a viagem de 5 quilómetros de casa ao trabalho caminhando e só atravesso a rua depois de me certificar de que de ambos lados não vem nenhum veículo. De momento, só os mimados buracos nos passeios me preocupam porque, desconhecendo-se-lhes a paternidade, nascem a cada dia como que cogumelos depois da chuva. Certo dia, a empresa para a qual trabalho decidiu abrir uma delegação provincial e fui escolhido para proceder ao lançamento. Só de pensar que tinha de viajar e ainda por cima de avião, quase tive um enfarte. Resisti o quanto pude, esperneando de várias maneiras.
Não havia outra saída senão ir, mas antes tratei de escrever o testamento: as dívidas com o banco deixei para o meu filho mais velho; à minha esposa e às minhas quatro filhas dei-lhes a casa e os mobiliários da sala; os aparelhos electrodomésticos deixei para a senhorita com a qual mantenho uma relação amorosa secreta há seis anos; e as economias guardadas no banco que só dão para o almoço de duas pessoas durante uma semana deixei para os meus três filhos com a vizinha. Assim estavam os bens divididos! Causa-me náuseas estar no interior do gigantesco pássaro, mesmo que esteja em terra firme. Sentado rigidamente e com aparência acanhada, como de costume, disse para mim mesmo:
“Só quem tem sangue frio é que acha piada andar nesta coisa”. Ao meu lado, veio sentar-se uma senhora com os olhos mergulhados em olheiras negras que lhe davam o aspecto de quem passara uma noite mal dormida. O bicho começou a levantar o voo, a senhora pôs-se a chorar e eu pus-me a pedir perdão a Deus pelos 30 anos de adultério, 10 desviando fundos da empresa, e por ter espancado, até perder os sentidos um curandeiro que me garantira que seria nomeado director, após ter-me levado dois meses de salário. O choro da senhora expulsou as minhas neuras, senti-me como que se estivesse a sair de uma terapia colectiva, e perguntei o que se passava. – É sempre assim quando viajo – respondeu.
– A senhora também tem medo de viajar num avião? Sorriu para depois dizer: – Fico deste jeito quando deixo o Eduardo sozinho e sobretudo com a empregada – e continuou a falar, desta vez soluçando –, sabe, meu senhor, o Edu é muito amável. Desde a morte do meu marido, ele tem sido um grande companheiro, está em todos momentos da minha vida. Adoro como ele me recebe quando chego a casa. As vizinhas morrem de inveja de mim, elas gostariam de ter um Eduardo nas suas vidas… Em pensamento, morrendo de inveja do tal Eduardo, fui dizendo para mim mesmo: “Não te preocupes com esse tal de Edu pois ele não passa de um daqueles serviçais musculosos, cheio de calos na mão e cheiram a estrumeira, que têm um cómodo na propriedade senhorial e, durante a noite, fazem uns servicinhos a viúvas carentes”
. Para confirmar as minhas hipóteses, quis saber a idade do sujeito: – Sete anos. – Sete!!! – exclamei – a senhora não tem vergonhaaa!!!!? – Vergonhaaa!!!! Porquê? – Ele ainda é uma criança, devia procurar alguém da sua idade, minha senhora. Ela olhou-me com estranheza. Agitando a cabeça, abriu a sua carteira e retirou uma fotografia e deu-ma. Qual não foi o meu espanto! Afinal, o Eduardo era um canino da raça Dachshund.