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Uma Vala (in)comum

Uma Vala (in)comum

É uma cova enorme no coração do cemitério que desperta a atenção. Há corpos sem vida. Por baixo deles encontram- -se dezenas de outros corpos. Também há ossos. O ar é irrespirável, uma mistura de carne queimada e excrementos. Não sabe onde nos encontramos? Um coveiro disse-nos que estávamos na vala comum do cemitério de Lhanguene.

Se sustentar uma pessoa desde a tenra idade até à fase adulta já é um bico-de- -obra, o mesmo se pode dizer quando esta morre. Ou seja, não é barato levar um cadáver ao seu último descanso.

Quando uma família enfrenta dificuldades para realizar o enterro, os agentes funerários, tidos como “empresários da morte”, não se compadecem com a dor alheia, ou seja, quando não há dinheiro estes não prestam os serviços, daí o surgimento, de há uns tempos a esta parte, de um fenómeno um tanto ou quanto preocupante na nossa sociedade: o abandono de corpos nos hospitais e nas morgues.

Sempre que um corpo é abandonado, a responsabilidade recai sobre o Estado que, como já é do domínio público, não possui condições para fazer face a este novo fenómeno. Como solução o Estado introduziu o sistema de vala comum, método usado em muitos países para sepultar corpos não reclamados.

Na cidade de Maputo, a vala comum está localizada no Cemitério de Lhanguene, bairro Luís Cabral, e sob a responsabilidade do Conselho Municipal da Cidade de Maputo, como gestor dos cemitérios da capital do país.

Segundo dados do Conselho Municipal, são levados para aquele local em média 280 cadáveres por mês, constituídos maioritariamente por crianças com idades compreendidas entre os 0 e 12 anos. Os restos mortais são provenientes de quatro hospitais, nomeadamente Hospital Central de Maputo, Hospital Geral de Mavalane, Hospital Geral José Macamo e Hospital Geral da Machava, este último localizado no município da Matola.

De acordo com Lucas Gulube, director-adjunto dos Serviços de Saúde e Salubridade do Conselho Municipal da Cidade de Maputo, este número tende a crescer devido ao que chama de “perda de valores” por parte da sociedade. “Antigamente, os corpos eram de mendigos e de vítimas de acidentes, mas ultimamente tem-se verificado um crescimento exponencial de corpos abandonados pelas famílias, o que não é habitual nem é permitido na nossa sociedade”.

O normal era que fossem levados à vala comum apenas os corpos não identificados ou abandonados nas morgues. Porém, ultimamente, as famílias têm abandonado os seus entes queridos ainda em vida, ou seja, levam-nos ao hospital e preenchem as fichas com nomes e moradas falsos como forma de dificultar ou impedir a sua localização para a realização das cerimónias fúnebres, no caso de o paciente perder a vida.

Antigamente os Serviços Sociais do Ministério da Saúde afectos às unidades sanitárias usavam os dados constantes nas fichas para localizar os responsáveis pelo paciente mas este novo modus operandi das famílias veio tornar este exercício difícil e, em muitos casos, impossível.

“Não é pertinente haver um serviço funerário do município”

Perante este quadro negro, questionámos a Lucas Gulube se o município aventava a hipótese de criar um serviço funerário municipal para apoiar as famílias sem capacidade para custear as cerimónias fúnebres, tendo este dito que “neste momento esta ideia está fora de cogitação.

O que se deve fazer é criar mecanismos de apoio às famílias para custear as cerimónias fúnebres. O município devia negociar com os agentes funerários para que estes fabriquem urnas mais baratas, tendo em conta a sua responsabilidade social. O que o município faz já é muito. Só em combustível, nós gastamos mais de 400 litros de diesel por semana”.

Para o Conselho Municipal, o valor pago pelas famílias pelo espaço, chapa de identificação, fixado em 75,00 meticais, em nada contribui para as receitas pois não representa nem sequer metade das despesas com o pessoal, funcionamento e manutenção dos cemitérios.

O município passa, a partir deste ano, a licenciar as agências funerárias, o que, segundo Gulube, irá criar um espaço para o diálogo com os agentes funerários no sentido de estes olharem não só para o lucro mas também para a área social.

O que é a vala comum?

Vala comum é uma cova geralmente localizada nos cemitérios onde os cadáveres não identificados, em conjunto, e não reclamados, são enterrado sem recurso a nenhuma cerimónia. Normalmente, os mesmos não são registados nos locais onde são enterrados.

Como funciona?

Quando passa o tempo previsto para a conservação de um corpo (um mês) sem que tenha sido reclamado, as unidades sanitárias comunicam ao município da sua existência e este faz a recolha e leva-os à vala comum, onde é feita a inumação (acto de enterrar, sepultar). A recolha dos corpos é feita todas as quartas e sextas-feiras por uma viatura pertencente ao Conselho Municipal de Maputo.

Em muitos países os corpos são acondicionados em urnas individuais e identificados por meio de uma pulseira, o que não acontece no nosso país. Cá, os corpos são enterrados numa cova previamente aberta e a sua identificação é feita só no papel, ou seja, no caso de aparecer uma família a reclamar um corpo dado como abandonado não é possível exumar o corpo.

Porém, o município diz ter identificado um tipo de urna feita de papelão que poderá ser utilizado futuramente mas ela é fabricada no exterior, o que acarreta custos. Neste momento está-se em conversações com o empresariado nacional para que este tipo de urna seja produzido localmente. Ainda não existe previsão para a implementação desta medida.

Custo mínimo de um funeral

Segundo dados fornecidos pela Associação das Agências Funerárias da Cidade de Maputo, para a realização de um funeral são necessários, no mínimo, cinco mil meticais, o equivalente a mais de dois salários mínimos. Este valor não inclui os gastos com o transporte, alimentação e outras despesas da cerimónia fúnebre.

Pobreza ou perda de valores?

 

Para o Conselho Cristão de Moçambique (CCM), organização que congrega várias igrejas, a pobreza não pode ser vista como sendo o principal motivo do aumento de casos de abandono de corpos nos hospitais e nas morgues pois ela não é um fenómeno novo. Esta situação deve-se ao contexto urbano.

“A vida da cidade altera os valores, a moral, e passa a reinar um espírito de sobrevivência onde cada um se preocupa com a sua vida. Há um rompimento com a ética, moral, o respeito, e a coesão social no seio da sociedade e a vala comum é uma manifestação da rotura desses valores, é a parte mais visível”.

 

Segundo Marcos Macamo, secretário- -geral do CCM, as comunidades devem ter pessoas que lidem com estes aspectos, consciencializando e promovendo a união entre os residentes porque “esses valores estão a ser pressionados pela vida urbana”.

 

Para Macamo, uma das soluções para este problema seria anunciar, nas rádios e jornais, os nomes e a existência de corpos não reclamados nas morgues de forma que os familiares ou pessoas de boa-fé possam proporcionar um enterro condigno aos finados e deixarmos de nos refugiar na pobreza.

 

Macamo acrescentou ainda que o município não pode, sem apoio, responsabilizar-se pelos corpos abandonados, o que este deve fazer é humanizar o serviço, dialogando com as comunidades e trabalhando com as organizações humanitárias. Outra solução apontada pelo secretário-geral da CCM é a introdução de uma taxa para a realização destes serviços, à semelhança do que acontece com a recolha de lixo e a taxa de rádio. “Mas na impossibilidade de adoptar essas ideias, o município podia introduzir o serviço de cremação, pois, para além de dar dignidade à pessoa, poupa espaço”, concluiu Macamo.


Cansaram-se de reclamar

 

O local onde se encontra a vala comum, nas traseiras do Cemitério de Lhanguene, para além de ser inadequado para aquele tipo de serviço, obriga a que os moradores do bairro Luís Cabral tenham de conviver com o cheiro nauseabundo que os cadáveres exalam quando entram em decomposição. Os moradores por nós ouvidos foram unânimes em afirmar que o município está a par das suas preocupações mas nada faz para as resolver.

 

A cova que é usada como vala comum está a menos de 20 (vinte) metros da área residencial e sem nenhuma vedação, embora o município tenha erguido um muro à sua volta.

 

Maria Machava, residente daquele bairro, diz que o município tem conhecimento das preocupações dos moradores, pois, vezes sem conta, estes já se manifestaram contra a continuidade da deposição de corpos naquele espaço devido ao cheiro, por um lado, e à hora em que são feitos os trabalhos (de dia). “Hoje em dia o município traz lixo e despeja-o mesmo em frente das nossas casas como se a nossa saúde não significasse nada para eles”.

 

“Pedimos que eles realizassem os enterros na vala comum de noite porque isso evitaria que as crianças presenciassem aquele acto, mas o município fez ouvidos de mercador e continua a fazer os trabalhos de dia. As crianças já conhecem o carro da vala comum e quando o vêem seguem-no e, nalgumas vezes, chegam a assistir aos homens do município a deitar os corpos, elas já não têm medo”, concluiu.

 

Por seu turno, Verónica Inguane, também moradora no mesmo bairro, diz que o principal nó de estrangulamento para os residentes daquele bairro é o cheiro insuportável que é exalado pelos cadáveres.

 

“Por mais que trabalhem de noite o cheiro vai continuar. Não sabemos se tapam mal os corpos ou não. Há dias em que o carro chega durante a hora do almoço e isso abriga-nos a interromper a refeição até que eles terminem”, disse Verónica.

 

Outro cidadão que falou à nossa equipa de reportagem foi Armando João*. Este diz que os moradores já estão cansados de reclamar e isso já levou algumas pessoas à cadeia porque, segundo ele, o Estado tem o monopólio do uso da força.

 

Para Manuel, só o facto de o carro passar por aquela zona durante o dia já é errado, para além do cheiro que os corpos provocam. “Sempre que o carro transportando os corpos chega temos que esconder as crianças porque as pessoas que fazem aquele trabalho não têm moral, mesmo vendo os petizes a brincar nas imediações da vala não as expulsam”.

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