Mundinho será daqueles músicos que nunca tocará nada sem ter a certeza daquilo que vai fazer. É um homem com o qual se deve ter cuidado na conversa, porque, como nas claves, que sustentam toda a sua vida, exigirá que as palavras sejam talhadas com responsabilidade. Está agora a caminho dos 70 – completa- os no dia 1 de Fevereiro de 2010 – e vive entre a luz e a penumbra, ou seja, é conhecido por muitos, mas muitos mais ainda o desconhecem. Por causa de mal-entendidos de algumas pessoas intelectualmente despreparadas, em certas ocasiões fi ca com medo de exprimir a sua opinião honesta. “Por vezes aparece alguém a perguntar-me se o fulano ou sicrano toca bem ou não determinado instrumento e eu respondo: sim, toca bem, mesmo sabendo que isso não é verdade.
O problema é que as pessoas não querem ouvir as verdades e eu também já não tenho idade para aguentar as farpas que virão depois disso”. Toca jazz standard, sem que isso lhe impeça de passar por outros estilos, como por exemplo a bossa nova, que ele nunca desgostou. “A bossa nova tem uma harmonia fantástica, como tem harmonia toda a música que é feita pelos brasileiros”, e Mundinho deixase cair facilmente nessa tentação. Mas será no jazz onde vamos encontrar a forte marca deste homem que vive hoje tranquilamente no bairro do Aeroporto, na cidade de Maputo.
Fomos à sua casa num dia desses, tendo como mote uma série de manifestações que estão sendo organizadas por um dos seus fi lhos: Adeodato, com vista a assinalar os 70 anos de vida de um homem que passou a vida inteira a cantar o tempo com instrumentos musicais. Um verdadeiro falcão que se revolta quando, no palco, no seu desempenho, é interrompido por indivíduos que não têm nenhuma cultura de jazz. “Como é que você vai fazer barulho, falando mais alto que os instrumentos, numa sessão de jazz? O jazz não é para qualquer pessoa. Fiquei desapontado no “Gil Vicente” quando, ao tocarmos, vezes sem conta apareciam ali pessoas embriagadas a manifestarem-se de forma negativa. Acho que se devem equilibrar os comportamentos para cada lugar”.
No semblante deste homem nota-se facilmente o sentido de vida. Parece um tigre que perscruta. Ou seja, recebeu-me com desconfiança na sua casa e eu percebi isso. Porém, passado pouco tempo de conversa, sentiuse impelido a abrir-se. Levou-me ao seu arsenal, onde, para além do piano vertical que me mostrou, deixoume contemplar mais cinco pianos eléctricos, um violão, uma bateria, uma guitarra e dois instrumentos de sopro. “Quando acordo fico sem saber que instrumento tocar para preencher os meus sentimentos. Se eu não toco não vivo”. E Mundinho toca aqueles instrumentos todos. O cachimbo é um adereço que faz parte do status deste artista. Fica mais tempo nas mãos do que propriamente nos lábios.
“Mas eu venho fumando desde os meus 20/22 anos, intercalando com cigarrilhas e charutos”. E isso é espantoso porque quando olhamos para o rosto do jazz-man, ele não está degradado. “Nunca tive problemas de saúde por causa do tabaco”
70 ANOS
Sobre os eventos que Adeodato está a organizar em homenagem ao seu pai, Mundinho diz sentir-se bastante honrado. “Estou naturalmente feliz por esta iniciativa do meu fi lho. É uma forma de mostrar às pessoas que eu existo e fazer com que os que não me conhecem saibam quem é Mundinho”. Este músico apresenta-se em público pela primeira vez em 1956, com apenas 16 anos, no “Aquário” (uma casa de pasto famosa na altura, na então cidade de Lourenço Marques).
E daí para a frente foi uma espécie de turbilhão, que nunca mais parou de perfurar. Misturou-se, no seu percurso, com grandes nomes desse tempo, os quais se confundem até hoje, com o seu sucesso. Estamos a falar, por exemplo, de João Franco Dantier, Luís Franco Dantier, Fernando Chichorro, Mário Confaque, Alex Govers, Joel Libombo e o grande Daíco, um guitarrista alucinante que recebeu, pela Associação Africana, a primeira guitarra eléctrica em Moçambique. Mas estes são apenas alguns nomes de uma enxurrada deles, daquele tempo de mitos, porque hoje podemos encontrar Mundinho entre a nata dos melhores jazistas deste tempo. Apesar de Mundinho ser um pianista por excelência, e bom executante de outros instrumentos, poucas vezes – para um músico do seu gabarito – aparece em casas de especialidade.
“Já não tenho idade para tocar por meia dúzias de amendoins. Não vou porque não querem pagar. Os músicos devem ser bem pagos e aqui no nosso país, infelizmente, não está a acontecer isso”. Ainda na senda dos pagamentos, Mundinho recorda- nos que é afi nador de pianos. “Uma vez chamaram- me para o Hotel Polana e perguntaram-me quanto é que queria que me pagassem para afi nar um piano que estava parado há bastante tempo. Pedi 500 dólares e eles dispensaram os meus serviços. Foram contratar um sul-africano que, de certeza absoluta, pediu muito mais do que eu.
O resto você pode perceber o que é que signifi ca”. O músico sente-se – apesar de estar realizado de uma forma geral – desapontado com algumas situações do seu país, onde se nota facilmente que o músico não é devidamente valorizado. Mundinho tem um disco gravado – ainda sem título – com os músicos Filipinho e Edgar Wilson. “Esta obra ainda tem de ser aperfeiçoada. Vai sair no seu devido tempo”. E enquanto o disco não sai, Mundinho está a caminho dos 70 e, quando olha para trás, deixou um caminho feito de trabalho e música bem feita.