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Um artista à beira de um ataque de nervos

Por vezes pensamos que estamos mergulhados numa crise social. Noutras, sentimos que precisamos de uma purificação. A verdade é que reflectir sobre o comportamento humano em relação à sexualidade, homossexualidade, nudismo exposto na rua e em palco, desrespeito à vida e a intolerância – em que vivemos a vários níveis – a partir de um só bailado, no mínimo, transtorna. Virgílio Sitole – que prepara a coreografia Utomipia – está à beira de um ataque de nervos. Mas, atenção, não são as suas utopias que o perturbam. Saiba porquê.

Virgílio Sitole é um coreógrafo moçambicano conceituado. Esta introdução serve para reduzir os parágrafos que se seguiriam para descrever o seu percurso. No entanto, nem por isso está imune à inoperância da legislação cultural deste país e, consequentemente, também experimenta as dificuldades que daí surgem.

Há mais de um mês, o coreógrafo prepara a sua nova peça, que será apresentada entre um e dois de Agosto. Mas, diga-se, há mais tempo solicitou apoios a algumas empresas moçambicanas. Foi em vão. Ou, pelo menos, esta foi a sua lamentação, na sexta-feira passada, a menos de 20 dias para a exibição da obra. Nenhuma das empresas que contactou solicitando financiamento lhe respondeu. Mesmo para expressar algum desfavor, o que conforta o artista. Afinal – quem sabe? – depois de muita ansiedade alimentada, os resultados podem ser favoráveis.

A precariedade da realidade em que o coreógrafo e os seus bailarinos trabalham no Cine Teatro África, o mesmo espaço que acolherá os ‘shows’, desviou a perspectiva da nossa matéria. É que no local onde nos acolheu, uma espécie de gabinete, há uma caixa de água e uns refrescos conservados por uma instituição cultural. No entanto, durante umas duas horas, os bailarinos não têm água para consumo.

A obra Utomipia que comporta as coreografias ‘Corpus’ e ‘Toleranse – N’siripwite Artes’ está cheia de cenários filosóficos, políticos, sociológicos, antropológicos, biológicos, bem como religiosos. “A vida deve ser prezada”. Por isso, além de – uma vez exposta – contribuir para a massificação das indústrias criativas no país, espera-se também que gira um debate em torno dos assuntos abordados.

De uma ou de outra forma, apesar de que a reflexão social em volta da vida que deve ser prezada seja necessária, por ser um tema artístico, vale a pena percebermos em que situação nos encontramos no tópico das indústrias criativas?

“Estamos num bom caminho. Mas sinto que todos os artistas enfrentam a falta de espaço para a realização dos ensaios e apresentação das obras, bem como de financiamento básico (para o guarda-roupa, para o cenário, aluguer de som e de luz, por exemplo). Ou seja, não temos condições básicas para a produção de um espectáculo. Esse é o nosso grande calcanhar de Aquiles”.

Virgílio explica que temos, em Moçambique, artistas plásticos talentosos, excelentes coreógrafos e bailarinos, bons actores e realizadores de cinema, artesãos, oleiros, escritores e músicos geniais que precisam de uma política cultural actuante para que o nosso país seja uma potência no campo das indústrias criativas.

O grande contra-senso será a disfunção e a não aplicação da legislação cultural, sobretudo no campo de financiamento. “Eu não sei o que é que nos falta para que a nossa política cultural seja aplicada no país. Não consigo encontrar explicação para esta realidade. Temos a Lei de Mecenato, mas as empresas nacionais – diante de todos os benefícios que podem ter – não aceitam apoiar a produção das artes”.

O autor da coreografia ‘Tolerense’, a terceira classificada no Concurso Pós-Amatodos sobre a SIDA, considera que “agora temos de parar de reinventar as políticas e operacionalizá-las”. E não lhe faltam argumentos.

“Quando estava na China, recebi um documento (produzido pelo Ministério da Indústria e Comércio) sobre a cesta básica em Moçambique. Aquilo foi uma coisa caricata. Pareceu-me que as pessoas que o desenharam não conheciam a realidade dos moçambicanos. Eles não analisaram a realidade social das pessoas. Por isso, quando divulgaram a informação, perceberam que o seu plano não era fazível”.

Na coreografia Utomipia há muitos objectivos e ideias cruzados. Em resultado da sua percepção sobre o funcionamento das indústrias culturais – “não posso criá-las sozinho” – o artista resolveu envolver, no concerto, 16 artistas plásticos que devem criar igual número de obras no âmbito desse conceito. “Se nós somos uma comunidade de criadores de várias manifestações artísticas, porque não lançar o desafio aos artistas plásticos?”.

Ou seja, “para mim, o importante é lançar este repto aos pintores no sentido de, a partir da dança contemporânea, eles produzirem as suas obras, da mesma forma que eu gostaria que um dia eles me fizessem um convite similar – criar uma coreografia inspirado numa tela”.

Outros obstáculos

E é aqui onde começam as complicações na vida do coreógrafo. É que o custo total, em dinheiro, dos materiais para o envolvimento dos artistas plásticos no projecto Utomipia, se aproxima dos 80 mil meticais – o que Virgílio Sitole não tem. Mas as dificuldades para a exposição da obra – apesar da existência de alguns apoios – não são só essas.

“Tenho de começar a produzir o cartaz para a comunicação. Se não tiver o financiamento, não sei como é que o farei. Se vou custear com o meu próprio dinheiro. Se o mesmo será reles. Não sei. Mas tenho de começar a fazer alguma coisa. Ainda estou à espera das respostas dos empresários. Hoje mandei o jovem que está a trabalhar comigo às empresas, a fim de saber o ponto da situação”.

“Se não tiver o patrocínio não sei como é que vou fazer, se produzo um cartaz reles. Não sei! Se até à quarta-feira, dia 17 de Julho, não tiver uma resposta favorável por parte das instituições a quem pedi apoios, terei de avançar com os meios que tenho: o auxílio da Companhia Nacional de Canto e Dança que me cedeu espeço, para ensaiar e realizar o espectáculo sem pagar nenhum tostão. Também tenho o apoio verbal da Logaritimo Produções e da IODINE Produções que participam com os equipamentos de som e de iluminação”.

Obstruções à indústria criativa

De acordo com Sitole, se os apoios de que está à espera não forem fornecidos, não terá outra opção a não ser criar um plano alternativo e, consequentemente, ineficaz. “Mas é em função de tudo isso que depois me questiono sobre qual é a indústria criativa que queremos construir em Moçambique. Porque apesar de eu perceber que temos de cooperar, em relação ao trabalho da pintura, até agora não sei de onde é que irão vir os 80 mil meticais para custear a produção das obras dos artistas que irão participar”.

“Agora estou a pensar em mandar cartas para pedir financiamento a algumas instituições bancárias, propondo que se elas patrocinarem a compra do material para o trabalho e – é a partir daqui que se perde alguma autenticidade artística da produção porque – as obras serão criadas com base nas cores que a instituição ostenta. Depois definiremos um número de telas que será ofertado à organização que poderá usá-las como entender”.

“O outro mecanismo em que estou a pensar é reduzir a quantidade de artistas plásticos a dois, de modo que com o seu próprio material eles criem as obras, que serão sua propriedade, podendo utilizá-las como quiserem. É que apesar de eu querer envolver as artes plásticas – e fazer muito esforço para o efeito – não tenho condições financeiras”, lamenta.

Seja como for, como o sem apoios, “o espectáculo irá acontecer”.

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