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Três décadas a patinar

Hóquei em Patins está de luto em Moçambique

Era a mística do bairro. Joaquim Chissano e Samora Machel, se tivessem vivido mais tempo na Mafalala, provavelmente teriam sido desportistas e não políticos de elite. Ali, todos queriam brilhar. Arsénio Esculudes não era excepção. Demonstrava vocação para o futebol, mas teve o azar de nascer e viver num bairro de super-estrelas. Nos jogos mais importantes, “comia banco”. Vendo que não tinha qualquer hipótese de triunfar no futebol, aos 10 anos inscreveu-se no hóquei do Ferroviário. Nascia, assim, uma das maiores estrelas moçambicanas e que deu origem a uma das famílias que mais brilhou em representação deste país, na bela arte de jogar… patinando!

Mafalala correu o mundo através do nome de Eusébio. Mas no futebol, Arsénio acha que o bairro tinha estrelas bem melhores que a “pantera negra”. Será possível? Quais?

– O Madala Gaiza era um futebolista incontornável. Só que queria juntar essa qualidade à condição de farrista. Depois do futebol, não dispensava o copo. O Patchasso, por exemplo, seria um super-ídolo, mas nunca se conseguiu adaptar às botas. Fazia maravilhas descalço, mas, quando punha as chuteiras, era uma desgraça.

Arsénio refere-se ao seu bairro como um santuário de desportistas, que vinham de outros locais e ali evoluíam. Cita Cândido Coelho e Belmiro Simango. Mas era também berço de pensadores, de onde ressalta o nome de José Craveirinha.

DISCRIMINADO

Mas é do Arsénio hoquista que vamos falar, um homem que ultrapassou barreiras, uma vez que não era fácil, no tempo colonial, um “não branco” praticar aquela modalidade considerada de elite. O seu primeiro adversário foi mesmo o racismo…

– Vivi cenas de discriminação que me revoltaram, no Ferroviário. Vi um colega, o Victor Passos à pancada porque dizia que os pretos tinham de ser os últimos a tomar banho. Mudei-me para o SNECI, ainda em idade júnior, mas ainda com 17 anos passei a jogar nos seniores.

O hóquei era a segunda modalidade depois do futebol, na então província de Moçambique. Brilhavam nomes como os de José Pereira, Souto, Bouçós, José e Fernando Adrião, Manuel Carrelo e outros. Novo ambiente, nova vida, boas condições e treinos a sério, no novo clube. Mas o “bichinho” do futebol, sempre presente…

– É verdade. Havia um médico no SNECI, o Dr. Alfredo Sampaio, que era fanático do 1.º de Maio. Antes de um jogo de hóquei fizemos uma “peladinha” e ele ficou impressionado. Treinei no 1.º de Maio, fui recebido pelo técnico José Guerreiro que já me conhecia e que se riu: “mandam-me um hoquista para aqui”? O sorriso tornou-se amarelo. Fiz um treino, mandaram inscrever-me na quarta-feira seguinte para jogar domingo.

CUNHA DO HÓQUEI

SALVOU-O DOS COMANDOS

Guerreiro, que o sabia bom hoquista pediu-lhe que levasse o futebol mais a sério. A vida da nossa personagem mudou. O hóquei conferia prestígio e estatuto, o futebol dava satisfação. Era treino de hóquei às segundas, quartas e sextas; treino de futebol às terças e quintas. Para jogar, os patins ao sábado e o pontapé na bola ao domingo. Uma vida totalmente preenchida pelo desporto, que mereceu um “raspanete” do papá Esculudes…

– Com tantas horas dedicadas ao desporto, o meu pai perguntou-me: então, quando é que estudas? Chumbei na escola e tive que optar. Foi uma decisão difícil mas escolhi o hóquei, pois no SNECI já tinha muitas regalias, com realce para a carrinha que me levava à casa. Quando dava entrada na Mafalala, conduzido por um motorista branco, o meu estatuto ficava bem vincado e eu era respeitado.

O ano de 1971 foi de viragem. Regressou ao Ferroviário por considerar que este clube já estava de cara lavada. Graças ao hóquei, “livrou-se” dos comandos, tendo feito a tropa normal em Tete, onde fundou uma escola de patinagem que se tornou famosa e deu bons frutos.

 

O hóquei na família

Na sua casa, só a esposa não patina. A gracejar, Arsénia diz que o marido e os filhos patinam por ela. Praticamente, todos os filhos começaram a andar e a patinar ao mesmo tempo. Vejamos: as duas meninas, que depois se viraram para o basquetebol e para a natação, começaram pela patinagem. A ausência de competição e de incentivos desmotivou-as. Mas com os rapazes, a situação é bem diferente. Senito, o mais velho (infelizmente já falecido), foi o que chegou mais longe, tendo sido até contratado por um clube italiano. Ele foi uma das “bandeiras” da modalidade. Seguem-se o Kiko e o Ivan, que jogam na equipa de todos nós. Numa casa repleta de patins, todos os recados são feitos sobre rodas.

Arsénio explica:

Um pai pobre dá o que pode. Sendo eu adepto ferrenho do hóquei, o que mais poderia oferecer de presente aos meus filhos? Das minhas magras reservas, desviava o que podia para um presente que considerava útil.

 

Começou aos 10 anos e terminou aos… 40!

Só ao completar 40 anos decidiu pendurar os patins. Para trás ficavam 27 anos sempre a patinar, em clubes e na Selecção. Ao todo, só sabe que realizou milhares de partidas. É um bicho que anda lá dentro e que incomoda.

As saudades são mais que muitas:

– Os campos enchiam-se naquela altura de gente ávida de ver bom hóquei. Através de Portugal, Moçambique era conhecido como uma das maiores potências mundiais. Até nos juniores, às vezes era necessário fechar os portões para deter a avalancha de assistentes. Nós, do hóquei, é que levávamos o basquetebol às costas. Faziam-se jornadas unificadas, para aproveitar o público do hóquei para o basquetebol. Éramos o “prato-forte”.

Sobre a realidade actual…

– Temos um dom natural que não é só para o futebol e que, infelizmente, não está a ser explorado no hóquei. Muitos craques da geração pós-Independência, como o Pedro Tivane, vêm dos subúrbios, de famílias pobres.

 

 

 

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