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Pandza: Tina

– Tina! – gritei, em quase supiro, emocionado por revê-la, muitos anos depois.

O rosto dela descascou-se num sorriso, os lábios abriram-se como uma maçaroca a desfolhar-se, e os grãos de milho amarelados da dentadura luziram. Era o mesmo sorriso elástico daqueles tempos, mas agora desenhado num rosto mais maduro. Os olhos também ainda brilhavam e trespassavam as pestanas como um sol furtivo por entre as frestas de caniço.

– Tina!

Tina foi a minha primeira namorada, primeiro amor. Eu não fui o primeiro amor dela. Ela já era madura quando nos conhecemos, na minha adolescência. Foi a primeira mulher por quem a minha saliva se adensou como um molho de quiabos e escorreu-me pelo canto da boca. Foi ela quem me ensinou que um homem é como um coqueiro, por dentro circula uma seiva que fermenta com o amor, transforma-se em sura e embriaga os corações das mulheres. Foi também a primeira mulher com quem falei em inglês: “Tina?” eu chamava-a com sotaque da minha terra. “Yes, baby”, respondia-me com mel na voz.

– Tina!

Sorridente, continuava sem me responder, e sem se mexer. O salto alto e o vestido curto realçavam as longas e torneadas pernas, esculpidas com o mesmo cinzel com que se esculpiram os coqueiros de Zavala. Na ponta dos dedos, escamas envernizadas e o olhar endiabrado lembravam a altivez pérfida de uma galinha doméstica, capaz de amainar o mais valente galo, com o bambolear empinado das penas traseiras.

Aproximei-me também sorrindo e parei diante dela. Ela olhou para mim do Rovuma ao Maputo, como se admirasse os anos por nós passados. Viu a minha barriga saliente, o meu cabelo a desfazer-se em calvície, a pêra que no meu queixo me transformou daquele cabritinho ingênuo num xiphongo maduro, e riu-se do que o tempo tinha feito connosco.

– Tina!

Pousei os calos da minha mão sobre as costas quentes da mão dela, devagar, como se a nostalgia me pesasse os movimentos. Senti-lhe a pele áspera, já muito madura, como fruta em final de época, denunciando a quase fermentada doçura da polpa. Era clara a pele, da cor cozida de mandioca com coco e contrastava com a minha muito ensolarada, num yin and yang agradável.

– Tina!

Fechei os olhos. Pronunciei-lhe o nome baixinho, como se a chamasse de dentro das minhas lembranças. Já não a via mas adivinhava que também tivesse fechado os olhos. Chegou mais perto, senti-lhe o perfume. Num diálogo telepático lembrámo- nos do passado. Bons momentos.

– Tina! – Sussurrei.

– My private dancer – respondeu abraçando-me, amolecida.

Lembrei-me do tempo em que passávamos horas abraçados. As harpas das cordas vocais vibravam como o vento a acariciar o fio do xitende quando ela, encostada ao meu ouvido, me dizia cantando que eu era o seu private dancer.

Naquele tempo, se nos desentendêssemos, ela levava a mão à cintura, sacundindo a anca e a cabeleira mais rebelde que um palmar em tarde de ventania, e perguntava-me “what’s love got to do, got to do with it?”

Ela era madura e eu não, mas eu é que tinha o remote control da relação. Adiantava e recuava quando quisesse. Fazia pause e o replay dos melhores momentos. E quando a relação ficasse turva, bastava limpar a cabeça do vídeo, ou recuar a fita magnética da cassete VHS para que tudo voltasse a correr conforme.

– Tina!

Ela não disse mais nada. Continuávamos de olhos fechados, apertando um ao outro no abraço, como que procurando no corpo a entrada secreta para a alma.

– Vai comprar, boss? – Sobressaltei-me e regressei, abrindo os olhos, quando o vendedor ambulante me abordou.

– Hein?!

– Boa música essa boss, daqueles tempos. Bom preço. Só cinquenta.

Eu estava sem dinheiro por isso nem regateei. Devolvi-lhe o DVD. Arrumou-o numa caixa ao lado de muitos outros que vendia e foi-se embora. A Tina continuava sorridente, na capa, olhando para mim com mel nos olhos, até eu perdê-la de vista.

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