Engana-se quem pensa que no “País da Marrabenta”, a criatividade e o talento bastam para edificar a vida de um artista. É preciso aglutinar, aos primeiros, mais ingredientes para ofuscar o morgadio, o nepotismo, a pirataria, o “lambe-botismo”, entre outros males que enfermam a praça das artes e culturas. No seio da Orquestra Thikity, que presentemente planifica o segundo álbum, encontramos a “tenacidade”.
Com um número reduzido de instrumentos musicais (xilofone, flauta e metalofone), as actividades da Orquestra Juvenil – actual Thikity – arrancam em 1982 sob a direcção da professora Luísa, da Escola de Música da Rádio Moçambique. Com o regresso do professor Yana, da Correia, introduz-se a prática de guitarra, bateria e piano.
Na ocasião, o sonho de “formar e edificar uma orquestra musical” ancorava o professor aos petizes, muitos dos quais a frequentar o ensino primário.
Com trabalho árduo, os adolescentes evoluíram de maneiras que é da orquestra infantil que surgem figuras lendárias da música moçambicana, nomeadamente, Ana Juliana e Osório Lucas.
Solidariedade intelectual
Arraigados pela camaradagem da época, da Orquestra Juvenil surge a Orquestra Feminina em 1986, que mais tarde se chamou Saziana. Com a exiguidade de instrumentos com que se debatiam, o espírito de irmandade potenciou a solidariedade, sobretudo, a intelectual.
“É que, apesar da falta de instrumentos musicais, incentivámos que cada membro, com o seu instrumento, ensinasse ao outro. A finalidade era que as meninas aprendessem a tocar algum instrumento”, conta Samss, o percussionista.
Uma digressão lendária
É sob a direcção do Professor Yana que acontece a primeira e única digressão da sua história na Europa, em 1991. “Participámos em festivais internacionais, como Image of Africa e Jazz Festival, ambos na Dinamarca, onde actuámos em Copenhaga, Odessa e Horsens”.
Se, por um lado, na Europa, as três semanas de intenso trabalho e intercâmbio artístico-cultural valeram aos artistas a conquista de credibilidade e confiança, em Moçambique, valeu-lhes a consolidação do seu estatuto.
Em solo pátrio os resultados da experiência foram animadoras. Afinal, “em 1994, a Rádio Moçambique confiou-nos o acompanhamento dos músicos finalistas do Ngoma Moçambique”, assinala acrescentando, “foi a primeira vez que mantivemos contacto com vários artistas”.
Porque “há sempre um tigre no coração do negro”, “alguns artistas duvidaram do nosso trabalho. Diziam que não tínhamos tarimba para tamanha envergadura do projecto. Mas orientamos cantores como Ducarmo, Baba, o casal Carlos e Zaida Chongo, tendo ainda produzido um dos trabalhos discográficos de Fernando Chiure”.
À procura de nome
Em finais dos anos ´90, a Rádio Moçambique, a instituição que sustentava todas as actividades da Orquestra Juvenil, da Escola de Música, e do Grupo RM, decide desvincular-se destes. Igual a todos – a Orquestra Juvenil tinha que “andar com os próprios pés”.
Foi neste contexto que esta colectividade artística partiu à procura de nome, afinal “não tinha sentido continuarmos com a designação Orquestra Juvenil da RM, quando já não fazíamos parte da Rádio”.
Doravante, se no campo financeiro e técnico a separação da Rádio Moçambique representou uma ruptura, no campo artístico o feito representou continuidade e abertura para o mundo.
“Tivemos várias propostas de nome. Mas acabámos por ficar com a designação “W – Thikity”, ou seja, os “World Thickety”. A ideia fundamental era que a nossa música seria o bilhete para o mundo. Por isso tocávamos todos os estilos musicais, designadamente o House Music, o Samba, o Raggae, o Zouk, o Pandzula, por aí adiante. Éramos animadores de festas. Mas quando, em 2004, gravámos o álbum Wakalala percebemos que já não fazia sentido a designação W – Thikity. Decidimos tocar música moçambicana. Por isso, passámos a ser simplesmente “Thikity”.
Um episódio triste
Depois de gravar o disco Wakalala, entre outras actividades, os Thikity promoveram, em 2006, um evento cultural – o Festival de Gerações.
Com a participação de artistas como Xidiminguana, Mingas, Stewart Sukuma, da chamada “velha geração”, bem como Edú, Jeny e Roberto Isaías, da “nova”, o evento preconizava que ambas as gerações cantassem as músicas dos Thikity e estes, por sua vez, as dos primeiros.
Conforme reporta a banda, se o evento teve sucesso é porque o público aderiu. De qualquer maneira, para a colectividade foi um fiasco. É que, “infelizmente os nossos mecenas culturais são selectivos. E nós fomos vítimas disso. Até a sexta- -feira, a maior empresa moçambicana de telefonia móvel (Mcel) dizia, debalde, que ia patrocinar o evento.
Sucedeu porém que, enquanto os artistas actuavam em palco, o Centro Cultural Franco-Moçambicano recolhia o dinheiro dos ingressos para saldar a dívida. Com fundos próprios, conseguimos pagar a todos os artistas. Pela proeza, ganhámos orgulho, mas em termos financeiros o evento foi um fiasco”.
“Gestão de banda” – um martírio
“Somos um grupo de irmãos de verdade, em que tudo funciona na base de unanimidade”, começa por dizer Samss para explicar como os Thikity se safam das dificuldades. A verdade é que “é difícil gerir uma banda musical, sobretudo num país como o nosso, em que o mercado é fraco, e os instrumentos musicais são caríssimos. Todavia, porque a gente pesquisa a música, assiste a vídeos, inspirando-se no trabalho dos outros, procuramos fazer o nosso melhor”.
Disfunção estrutural
Conforme Bernardo Domingos, as dificuldades por que passam as bandas sãos fossilizadas pelo “lambe-botismo, corrupção e a disfunção das instituições sociais ao serviço da arte e da cultura”.
Para o guitarrista, os media audiovisuais são a outra face da moeda com culpa no cartório. Os dirigentes de programas de música e entretenimento alimentam esquemas de corrupção e suborno para promover a “mediocridade na Rádio e na TV”.
Por seu turno, Zenith explica que o outro aspecto é a fragilidade e inoperância dos mecenas em relação à aposta nas bandas. Disto resulta que as empresas “contratam o primeiro artista que toca em playback, sem antes avaliarem o contributo que a sua música tem para a construção social da nação. Isto faz com que – uma vez sem apoio – as bandas fiquem à deriva”.
O paradoxo
Mais caricato e paradoxal é que, com a emergência dos eventos votados à descoberta de talentos, a inoperância das instituições ao serviço da defesa e promoção da arte acabam por acomodar, em regra, uma situação que devia ser excepção.
Tem-se, de um lado, um grupo de imitadores (que não pagam direitos autorais) a receber “um balúrdio de prémios”, em valores monetários e viaturas, se necessário. E do outro, os criadores a minguar. Parece que o melhor é imitar que criar. “Convenhamos, há coisas que não são claras na nossa cultura, e isso interessa a alguém”, desabafam os artistas.
Como reverter cenário?
Grotesca, na verdade, a situação social dos artistas. É uma realidade em que não se vive, sobrevive- se. Assim, para quem consegue manter-se de pé – como os Thikity – não se deve negar o reconhecimento de “exemplo de tenacidade”.
Mas afinal, “o que se faz com o acervo de arte e cultura que “bienalmente” se produz nos Festivais Nacionais de Cultura? Como e onde são aplicados os instrumentos legais ao serviço da arte e cultura no país? Que interesse e benefícios há, para os moçambicanos, em impingi-los com produtos culturais do exterior em detrimento dos seus?
O que é que custa ao Governo incentivar a venda local de instrumentos musicais a preços acessíveis?”. Para quem de direito, responder eficazmente a estas questões, talvez possa ser uma tentativa de reverter o cenário.
Pequena biografia
A Orquestra Thikity foi fundada em 1982, como Orquestra Juvenil da Rádio Moçambique, tendo adoptado este nome em 1998 – altura em que se desvincula da Rádio. Dos seus fundadores integra ainda Cíntia Amanda (vocalista, também jurista), Zenith (um engenheiro informático, na guitarra), Samss (musicólogo e técnico de identificação civil, na percussão) e Magaia (baterista e professor de música).
Ana Juliana e Osório Lucas são outros co-fundadores que abraçaram outras actividades diferentes da música. Aos primeiros juntam-se, actualmente, Bernardo Domingos, Timóteo Cuche, Soares e Canxixe, respectivamente na guitarra solo, saxofone, teclado e baixo.
Das várias actividades consta no portfólio do grupo a actuação com o cantor brasileiro, Martinho da Vila, por ocasião da celebração do 30º aniversário da RM, bem como a actuação com a maior banda africana de Zouk, os Kassav em 2004. Desde a segunda metade da década de ´80 a esta parte, a banda gravou mais de 70 músicas.