No estado de morto em que me encontro – se rir fosse uma prática que matasse – acho já teria morrido inúmeras vezes na morte. É que eu me farto de rir das cenas que vejo a partir do lugar do decesso. “Isso é um absurdo!”, diria um bom vivente, amante da vida terrena com todos os seus prazeres. Mas, a verdade é que, depois das peripécias que experimentei durante a minha passagem na vida, hão-de convir que também tenho a minha razão. A morte é mais prazenteira que a vida.
Rio-me! Na morte nada dói. Tudo é risível
Rio-me do caixão em que dentro de instantes me depositarão
Rio-me das rosas que me ofertarão
Rio-me das palavras emocionantes que me dedicarão
Rio-me da cobardia e da coragem que cobardemente manifestarão
Rio-me!
Rio-me de tudo porque tudo, por aqui, é risível
Durante os meus tempos de vivente, andei carente. Passei necessida- des de tal sorte que, em inúmeras vezes, pensei em partir desta para o melhor, no entanto, a cobardia – típica da condição humana – adiava-me a partida.
Durante muitos anos, mais da metade da minha existência terrena, dediquei a vida aos estudos. Formei-me mas nem cheguei a usufruir das benesses desta formação. Um trabalho de mais de 20 anos. A experiên- cia da educação do meu país era o protótipo de uma sociedade baseada na discriminação. O ensino secular fazia-se um instrumento de gestão do poder, distinguindo o culto do marginal, o marginalizado, a despesa nacional.
Felizmente, eu havia sido discriminado pela positiva. Tinha um emprego seguro. Casei-me e construí a minha casa. Mas aquilo era apenas uma casa porque, ainda que casado, o meu lar não funcionava como tal. A minha vida de casado era uma ditadura muito dura. Eu tinha uma esposa que – abrigada na Lei da Violência Doméstica Contra a Mulher e a Criança –, em certos dias, para castigar-me, só cozinhava lume em casa.
Se nos outros dias não comi fogo é porque, diferente da comida, ele não só queima, transforma-se. Torna-se cinza. À minha mulher não faltavam alimentos, mas ela cozia lume. Chegada a hora do almoço, não havia comida. Houve vezes em que eu perdi a noção do perigo, fiquei sem saber o que lhe dizer, porque se lhe chamasse atenção iríamos brigar.
A OMM ia acusar-me de praticar violência doméstica. Eu não queria ficar enjaulado por crimes praticados contra mim. Eu tinha de encontrar uma saída. Mesmo se a saída fosse a minha própria saída. É que, mesmo naqueles dias, como qualquer homem maduro, eu também queria acordar de manhã e dizer bom dia a alguém e significar o dito. Mas isso, sem ser hipocrisia, não era possível.
Por essa razão, entediado, decidi fenecer. Nos dias que correm, ninguém sabe explicar as razões da minha morte súbita. A Polícia de Investigação Criminal esmera-se nas suas pesquisas, a fim de apurar a verdade – mais uma razão que, nesta condição de defunto, me farta de rir. Quando lhes dizia que eu era violentado eles não acreditavam.
Agora que morri querem repor a justiça. Que justiça? Eu estou morto! Perante os meus contemporâneos que eram eclécticos pensadores, sobretudo em matérias de atribuir nomes às situações e realidades (Geração da Viragem, País do Pandza, Pérola do Índico, Maravilhoso Povo, por exemplo) aquela ocasião ganhou uma denominação – fatídico dia!
Por parecer-me bastante constructo, este conceito – que se refere à efeméride da minha morte – também mata-me de rir. Há vezes em que eu penso que até na morte ninguém me quer vivo. De qualquer modo, ainda que ignorando as suas razões, eu já não devo ficar revoltado, como uma criança, em relação à morte. É bom que eu pare de maldizê-la.
Ela possui a sua importância. A morte como uma dimensão em que – como acontece na vida – também se aprende, não pode ser uma eterna prostituta como eu pensava. Ela é uma escola. Com a morte, eu aprendi que podia ser (e tornei-me) uma perda irreparável. Prestaram-me homenagem. Todos, sem nenhuma hipocrisia, bem disseram sobre a minha pessoa.
Ninguém me detestava como eu, erradamente, pensava em vida. Todos eram meus fraternos amigos. É por essa razão que a partir do dia da minha morte, eu comecei a congratular-me com as coisas que percebia: a morte não era tão perversa como aprendera na minha vida. Ela não era um fim em si, mas uma continuidade da vida em outro lugar, o espaço da morte.
Talvez seja por causa disso que, nos dias que correm, além da pena do cemitério – que não conseguirá abrigar todos os defuntos – tenho medo do dia em que as pes- soas, finalmente, irão descobrir as vantagens da morte. Todos irão querer morrer. Nesse dia vou-me rir de todos novamente.
Se eu pudesse retornar à vida, pediria mil perdões a todos. A verdade é que, à sua maneira, eles me amavam!