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Sexo: pão nosso de cada dia

Sexo: pão nosso de cada dia

Gaudêncio – nome fictício – tem 38 anos e é solteiro. Nunca teve um relacionamento sério, daqueles com direito a beijinhos e promessas de felicidade eterna. Todas as suas relações, chamemos-lhes assim, resumem- se a contratos de compra e venda de prazer. Sexo como princípio e fi m. Satisfação instantânea para apagar, por instantes, a angústia. Para matar o vício.

Podia escrever o roteiro dos prostíbulos de Maputo, sua terra natal, com bolinha vermelha no canto da página. Começou a frequentá-los ainda na puberdade, mas foi após a morte do pai, há 14 anos, que a sua “adicção”, como constantemente refere, se agudizou.

O dinheiro do pai – que era agora não só dele, mas também da mãe e da irmã – foi-lhe alimentando o vício. Quanto mais tinha, mais visitas fazia aos bares e antros de prostituição na baixa de Maputo. No trabalho cresciam as difi culdades em concentrar-se.

Os anúncios de festas nas discotecas ou em residências, por sms, eram como o convite de bar aberto para um alcoólico. Conhecia-os de cor e procurava logo as festas mais libertinas. Sempre que havia um festa que prometia, “não era capaz de faltar”.

A impiedosa ressaca batia mais forte quando o dinheiro começava a escassear. Suores, ansiedade, frustrações. A abstinência alterava-lhe o humor. Tornavase agressivo, insultava os familiares. As mentiras sucediam-se ao ritmo com que acumulava dívidas. Ser dependente de sexo não tem nada de divertido.

Afecta o trabalho, a concentração, as relações humanas, as economias, a saúde. “Como em qualquer dependência, queremos sempre mais. E quando não temos sofremos.” Foi uma questão de tempo até o comportamento chamar a atenção dos familiares. Confessou os seus fantasmas primeiro a dois primos e, mais tarde, à irmã.

Pressionado pela família, aceitou, com relutância, iniciar um tratamento tradicional contra a dependência. Procurou pelos famosos médicos tradicionais que pululam um pouco por todo o grande Maputo, os quais anunciam curas milagrosas. Recaiu em menos de um mês mas tentou de novo.

Durante dois meses, permaneceu internado em casa de um médico tradicional em Inhambane, um especialista em casos difíceis. No entanto, em casos do género, explica Bernardo Fumo, psicólogo, o problema “é essencialmente psicológico e emocional”.

Ou seja, “o trabalho de um médico tradicional pode até livrar o paciente do problema não pelo tratamento em si, mas sim porque os efeitos de alguém acreditar que aquela é a maior via para a cura tem resultados espantosos”.

Por outro lado, “é estranho alguém, pelo contexto africano de virilidade, julgar que gostar de sexo é um problema. O normal seria as pessoas olharem para o problema como uma bênção dos antepassados”.

“Quando cheguei a Inhambane, só pensei: ‘Não tenho nada a ver com esta gente’”, lembra Gaudêncio. “Só depois percebi que os meios que usamos para atingir os nossos fi ns são os mesmos: o roubo, a mentira, a desonestidade…” A parte mais difícil, recorda, não foi a admissão do comportamento, nem a vergonha que lhe está associada. Foi o medo de voltar a desiludir os familiares.

Apesar de muito popular nos Estados Unidos – muito por culpa dos tratamentos realizados por estrelas de Hollywood como Michael Douglas ou David Duchovny e mais recentemente o caso do golfista Tiger Woods –, a dependência do sexo está longe de ser consensual.

Um dos críticos é o psiquiatra Manuel Macamo. O docente defende que a medicina e a ciência devem evitar a “medicalização do pecado”, considerando perigoso, “embora esteja na moda alargar aos comportamentos (sexuais) conceitos elaborados em função dos efeitos químicos provocados no organismo por substâncias como a nicotina, o álcool e as drogas em geral”.

O conceito não está ainda formalmente reconhecido pelo Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM-IV-TR, na sigla em inglês), a “bíblia” dos psiquiatras. Em teoria, não existe embora muitos especialistas, sobretudo americanos, defendam a sua inclusão na próxima revisão do manual, em 2012.

Segundo Nilza Cangela, licenciada em psicologia pela Universidade Pedagógica, trata-se de um quadro clínico “praticamente só diagnosticável nos homens”. Implica o envolvimento em “múltiplas relações anónimas”, em contexto afectivo “pobre ou ausente”, como que respondendo a um impulso “incontrolável”.

O resultado é geralmente “um orgasmo de pouca qualidade”, acompanhado de sentimentos “disfóricos e eventualmente de arrependimento ou culpabilidade”. Atingindo o clímax, volta a ansiedade e a necessidade de dominá-la com outra experiência sexual. É um círculo vicioso, que progressivamente domina a vida do indivíduo.

Diferente, explica Macamo, é o conceito de ninfomania (nas mulheres) ou satiríase (nos homens), em que o envolvimento é desejado e não parte tanto de um impulso que não se controla.

“Embora se observe igualmente um envolvimento com um grande número de parceiros, os sentimentos de satisfação prevalecem em relação aos de disforia e o comportamento nunca é sentido como nocivo ou um problema.”

Nestes casos, acrescenta o especialista, a instabilidade afectiva e a incapacidade de manter uma relação duradoura com uma pessoa após a adolescência pode indicar uma personalidade imatura ou mesmo uma “verdadeira perturbação da personalidade”.

Decorreram quase quatro anos desde que Gaudêncio saiu de Inhambane. Regressou ao trabalho, mas como não tinha licença médica relativa ao tratamento tradicional a que se submetera, perdeu o emprego. Batalhou e encontrou outro. Ganha menos, mas não se queixa porque o mesmo permitelhe pagar as dívidas que contraiu.

Todos os dias luta para reconquistar a confi ança da família. Nunca mais teve uma recaída, mas a tentação bate-lhe a porta com frequência. “Vontade temos sempre. Temos é que aprender a viver com isso”.

Sabe que voltar “ao mundo da noite” é expor-se à possibilidade de cair de novo no abismo da dependência. “Se sei que os colegas de trabalho, depois de um jantar, vão a uma discoteca, eu desapareço. Se for, posso recair.”

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